domingo, 29 de julho de 2018

Das dores crónicas




Já escutei chamar poetas do quotidiano aos cronistas dos nossos dias, talvez por causa do seu discurso que se move entre a reportagem e a literatura, entre o oral e o literário, entre a narração impessoal dos acontecimentos e a força da imaginação.


Na crónica, há uma ideia pacificamente aceite de que, mais do que um diálogo com o leitor, existe um forte monólogo com o sujeito da enunciação, já que a subjetividade percorre todo o discurso e o derramar das palavras ocorre muitas vezes ao sabor da vertigem do pensamento.

Trata-se um exercício livre, sem deadlines, imposições temáticas ou preocupações com o juízo de quem nos lê. É por isso que gosto particularmente deste discurso livre, errático, que oscila entre o profundo e o brejeiro e cujo valor reside essencialmente na genuinidade despudorada das palavras.

Eu não sei se o que me proponho publicar são crónicas ou simplesmente prosa livre. Prefiro de longe a não rotulagem e só por comodidade chamarei crónicas aos escritos que tenciono postar - este feio neologismo - com alguma regularidade nesta rede social (somente visíveis para algumas pessoas). A escrita é (quase) sempre uma catarse, uma espécie de alívio e libertação e, sobretudo, uma forma de falarmos sem sermos interrompidos.

Há dores crónicas que nada têm a ver com as ditas crónicas das letras, mas que afligem diariamente muita plebe que não sabe o que fazer com tamanha frustração. A dor de cotovelo é um paradigma desta maleita que prolifera e é identificável em quase todos os lugares. É constatável nas conversas nos cafés, nos restaurantes, nos espaços públicos em geral, mas sobretudo nas redes sociais e chega a nausear, tanta a repetição da boçalidade falha de originalidade.

É fácil detetar os crónicos da frustração e da inveja pelos sinais de baixa auto-estima que mimeticamente emitem, pois as frases que verbalizam ou escrevem são invariavelmente as mesmas: "tenho a universidade da vida"; "aquele gajo lá por ser doutor não deixa de ser mais burro do que eu"; "sou uma pessoa simples (leia-se: inculta, iletrada) e (só) gosto de pessoas simples ( as outras, como não as entendo e ofendem-me por serem diferentes de mim, odeio-as); " na fábrica substituía muitas vezes o engenheiro e até sabia mais do que ele"; "não sou doutor mas não sou burro!"; " eu toda a vida trabalhei e não estive sentado a uma secretária"

Os exemplos multiplicam-se e não serei o único que está cansado de escutar e ler impropérios deste género a despropósito de coisa alguma. Basta, digo eu! E é para mim um alívio falar hoje destas coisas. Ninguém é mais do que ninguém e todos temos o nosso valor. A nossa sabedoria soçobra perante a grandeza da nossa ignorância em assuntos que não dominamos e desconhecemos em absoluto. O que seria de mim sem os sapateiros, os canalizadores, os médicos, os padeiros, os enfermeiros, os informáticos, os engenheiros, os agricultores, os pescadores, os serralheiros? Nós somos aquilo para que nos treinámos durante o percurso da nossa vida e, pela lógica da especialização, ninguém consegue ser bom em tudo. Todos dependemos uns dos outros e temos de ter a humildade de aprender e confiar naqueles que treinaram certas valências que para nós são absurdos desconhecidos.

As coisas existem. Estão lá. Não vale a desculpa eterna, a lamuria recorrente, a inveja peçonhenta e sabe-se lá o sacrifício que muitos fizeram para alcançar os patamares a que se propuseram. Quem quer uma coisa tem de lutar para o conseguir, fazer escolhas, desistir de algo em prol de prioridades, dispor-se ao sacrifício. A regra é igual para todos. Não sei de outra forma de conseguir alguma coisa que tenha desejado muito. O contrário é a conformação com uma dor crónica de inveja: o eternizar de uma mediocridade auto-infligida e desejada.


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