domingo, 21 de outubro de 2018

O AEC Regent III





O AEC Regent III, fabricado no Reino Unido e usado no transporte público londrino, era o autocarro double deck usado pela Carris em Lisboa, desde os anos 50 até meados da década de 80 do século XX.

A sua cor verde azeitona, o matraquear inconfundível do enorme motor de 9.6 litros e o ruído típico dos travões operados por pressão de ar, tornavam-no inconfundível no trânsito lisboeta.

Ainda gaiato, recordo-me de ter por eles um verdadeiro fascínio, agora num desfiar de memórias:

O teto dos autocarros a roçar as ramadas mais baixas das árvores da Avenida da Liberdade, provocando, por vezes, a fuga de muita passarada que por lá abundava; a forma como a carroçaria chiava e adornava completamente nas curvas mais apertadas; a cabine do chofer, parecida com uma cápsula, com uma porta individual, onde o condutor se agarrava a um volante primitivo, sem direção assistida, forrado com fita isoladora verde, fazendo esforços enormes para manobrar o gigantismo do veículo; a escada traseira (nalguns modelos era na dianteira) elíptica, onde mal nos segurávamos quando o autocarro fazia uma travagem ou uma curva mais apertada (nunca esperavam que as pessoas estivessem sentadas para arrancar); os bancos de napa castanha; as luzes dianteiras, a grelha frontal e o tampão do radiador (reminiscências dos calhambeques) - o radiador era frequentemente reabastecido com água pelos motoristas, que transportavam na cabine um jerry can e um funil, ambos verde azeitona (a cor era a marca da empresa), pois os veículos aqueciam muito, especialmente no verão.

Cheguei a ver um chofer que se queimou gravemente quando estava a desenroscar o tampão do radiador.

Nessa época, sem direitos, greves ou reivindicações, os chofers levavam uma vida desgastante: conduziam veículos primitivos, desconfortáveis, lentos e pesados, sem ar condicionado, com mudanças manuais, sistemas de travagem arcaicos e suspensões duríssimas, eram obrigados a usar farda, fosse verão ou inverno e faziam muitas vezes de mecânico, já que a manutenção e as reparações simples ficavam por sua conta.

Delicioso é, hoje, recordar-me criança, numa época que dista 50 anos do mundo atual e trazer à colação algumas sinestesias que então forravam o meu imaginário. Nesses tempos a vida era bastante dura, mas a saciedade era mais facilmente atingida - as pequenas coisas tinham outro sabor, pois sabiam a grandes coisas.




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