sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Tolan o encalhado



Nos princípios de 1980, eu morava e trabalhava em Lisboa e estudava à noite na Universidade, mas utilizava com alguma regularidade os cacilheiros, uma vez que nunca me desprendi da cidade de Almada. Numa manhã de nevoeiro do mês de fevereiro, que bem recordo, o porta contentores Tollan, de bandeira britânica, chocou, em pleno estuário do Tejo, com um navio sueco, arrastando para a morte 4 dos seus 16 tripulantes.

Seguiram-se uma longa saga de tentativas frustradas de remover o navio e durante quase quatro anos, o Tollan permaneceu encalhado em frente à principal praça lisboeta e entrou no anedotário nacional.

Chegou-se ao desplante de se publicarem mapas turísticos da cidade de Lisboa com a representação do Tejo e do navio encalhado.

O nome Tollan, na sua versão aportuguesada, Tolan, deu nomes a cafés, restaurantes e a bares de diversão noturna lisboetas e entrou no léxico como sinónimo de "encalhado".

Os jantares de solteiros passaram, por exemplo, a designar-se como "jantares tollan", já que coloquialmente "estar encalhado" era um termo que se aplicava àquelas pessoas que permaneciam no estado de solteiro, fosse por vontade própria ou por um qualquer infortúnio.

Com a remoção do navio das águas do Tejo e o aparecimento de novas gerações desconhecedoras deste episódio, o termo Tolan, com a significação que à data tomou, caiu em desuso.

Voltámos ao useiro e vezeiro termo "encalhado", para designarmos de forma torpe as pessoas que estagnaram no celibato.

Em 1963, tinha eu dois anos de idade, um violento incêndio destruiu, na sua quase totalidade, a última nau portuguesa da chamada "Carreira da Índia", a fragata D. Fernando II e Glória, mantida ao serviço da Marinha Portuguesa entre 1845 e 1878.

A fragata encontrava-se fundeada em pleno estuário do Tejo, no Mar da Palha, pois servia então de sede à Obra Social Fragata D. Fernando, uma instituição destinada ao acolhimento de rapazes oriundos de famílias de parcos recursos económicos e que ali recebiam instrução escolar e treino de marinha.

Já em adulto, durante algum tempo, insisti com o meu falecido pai, dizendo que me recordava de estar ao seu colo, na varanda da casa de Almada, a assistir ao incêndio. Ele dizia que era impossível que eu com dois anos de idade tivesse memórias, mas o detalhe com que descrevi o momento vivido acabou por o convencer. Na verdade, nem ele nem ninguém, me tinha contado que eu assistira ao incêndio ao seu colo e à intervenção dos bombeiros nas águas do Tejo.

Sabe-se que por volta de um ano e meio e três anos, a capacidade intelectual das criança aumenta e vai melhorando a memória aos poucos. Aos quatro anos, segundo a melhor doutrina, as áreas responsáveis pela memória amadurecem e começam a existir lembranças.

O estranho de tudo isto é que dificilmente consigo recordar episódios recentes, mas retive, ainda que em esboço, muitas cenas passadas na minha mais precoce infância.

Após o incêndio, o remanescente da fragata foi rebocado para uma área fluvial com pouca navegabilidade e permaneceu enterrada no lodo durante quase trinta anos. Somente a partir de 1992 foi submetida a um aturado processo de reconstrução, a tempo de ser um dos ex libris da Expo de 1998.

Ambas as histórias comungam um facto que é um naufrágio, mas o encalhamento da nossa fragata, contrariamente ao caso do Tollan, não deu origem um neologismo coloquial, do tipo: "Então, ainda estás D. Fernando e Glória?" - para significar "ainda estás solteiro/a?

Porventura, o cizentismo do regime e a crónica falta de sentido de humor dos bimbos que manipulavam os mecanismos da censura, em tudo o que respeitasse a "brincar com símbolos nacionais", jamais permitiria que alastrasse uma piada de nenhuma conveniência política.

O episódio da fragata D. Fernando II e Glória foi, em alternativa à jocosidade, aproveitado pelo regime para exaltação de um dos símbolos nacionais, a bandeira. Os órgãos de comunicação social da época, veicularam a notícia da história de um bombeiro que, vendo o maior símbolo nacional em risco de ser consumido pelas chamas, com risco da sua própria vida, conseguiu arrear a bandeira e guardá-la em lugar seguro.

O bombeiro foi naturalmente condecorado e, anos mais tarde, confidenciou que tinha sido imerecida a honraria, pois tudo não tinha passado de uma história fabricada.

Foi preciso Abril chegar para se poder brincar com naufrágios, Tolans e encalhados.

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