sábado, 19 de outubro de 2019

Os amigos da caneta



Nos idos anos 70 do século passado, ainda as redes sociais e a Internet não tinham sido inventadas, mas decerto já sonhadas, existia um sucedâneo das atuais redes sociais, muito popular à época. Refiro-me ao "Global Penfriends".

Constatei que a organização ainda existe, mas com um espírito totalmente comercial, longe da natureza desinteressada dos seus primórdios. Fruto da globalização e da infestação capitalista que nos rege, transformou-se numa rede internacional de contactos, à semelhança de tantas outras, onde se paga para ver e contactar perfis.

Na minha juventude, os amigos por correspondência, os chamados pen-friends, eram pessoas com as quais nos correspondíamos através de cartas, geralmente de correio aéreo. O pen pal (literalmente: amigo de caneta) era alguém com quem comunicávamos, por vezes, durante largos anos, sendo raros os casos em que nos conhecíamos fisicamente, apesar das mútuas promessas nesse sentido.

Bastava fazer uma inscrição, que era enviada por correio, julgo que gratuita ou com um preço simbólico, escolher as idades, o género das pessoas e os países com os quais nos queríamos corresponder. Depois, recebíamos moradas e perfis de pessoas que encaixavam nas nossas preferências. Gastava-se somente o dinheiro do selo, do envelope "air-mail", a tinta da caneta e o papel de carta.

Nos anos 70, imediatamente após o 25 de Abril, a música pop/rock, até então com difusão mitigada em Portugal, fazia as delicias da juventude. O interrail, o conhecimento de "novos mundos", as vindimas em França - forma expedita de ganhar dinheiro suficiente para viajar - a ida a Londres, capital mítica do pop/rock e da moda juvenil, faziam parte do imaginário dos guedelhudos, de calças à boca-de-sino, com missangas nos pulsos e bornais militares a tiracolo, em que eu me inseria.

O conhecimento da língua inglesa, falada e escrita, era o passaporte natural para os jovens que recusavam fazer parte de uma geração retrógrada e alheada do "real world" que acontecia lá fora. Para muitos da minha geração, os pen-friends foram a forma expedita de praticarem o inglês, conhecerem estrangeiros/as, apaixonarem-se virtualmente, fazerem promessas vãs, por vezes, juras de amor, pregarem algumas mentiras dificilmente verificáveis e colecionarem fotos de lindas suecas e inglesas, que eram passadas de mão em mão no pátio do liceu.

Cheguei a ter 12 pen-friends, que iam desde a Suécia até à África do Sul e penso que a quase todas prometi um dia as visitar pessoalmente. Nunca me aconteceu conhecer fisicamente uma pen-friend, até porque, com o avançar da idade, os meus interesses começavam a focar-se em realidades mais tangíveis. Sei, no entanto, de casos em que os pais financiaram viagens a certos meninos, para que estes pudessem ir conhecer as suas princesas longínquas. Pelo menos num caso que sei, deu em namoro, mas apenas durante o período da visita.

Independentemente da ingenuidade inerente, recordo o tempo dos pen-friends como uma época fantástica que em muito contribuiu para preencher o meu imaginário e consolidar alguma fluidez na escrita do inglês. Ainda guardo numa caixa as muitas dezenas de cartas que me foram remetidas, bem como muitas fotografias de lindas jovens com os penteados da moda 70s. De vez em quando, em dia de arrumações, lá tropeço numa das caixas e releio com deliciosa vontade as missivas que me enviavam.

Num dia em que eu já não esteja, atirem para o lixo tudo isso e mais alguma coisa. As coisas que nos importam, só têm a medida da importância que dada por nós mesmos. Esses tempos foram saborosos e não voltam mais. Vivemos noutra dimensão, não necessariamente melhor.
 

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