domingo, 25 de julho de 2021

Adeus Otelo


Em 1984/85, ainda durante o Serviço Militar Obrigatório, fui colocado no Forte Militar de Caxias. Na época, o celebérrimo e sinistro estabelecimento era uma prisão militar e o preso mais famoso, ainda mais que o cabo Vidrago, perigoso cadastrado que arrancara uma orelha à dentada a outro recluso, era o Tenente Coronel Otelo Saraiva de Carvalho.

Para além das muitas peripécias que presenciei em Caxias, nesses conturbados tempos, que dariam manancial para uma longa história, recordo particularmente o Otelo, pois o destino fez com que nos cruzássemos pessoalmente. Fui incumbido, como graduado, da tarefa diária de assistir ao fornecimento das refeições ao ilustre prisioneiro. Desde que a comida era retirada do panelão gigante, onde se cozinhava para centenas de reclusos, guardas prisionais, militares e funcionários civis, até ser entregue à mãos do ilustre presidiário, era eu quem acompanhava o trajeto da mesma através dos corredores da prisão e dentro do elevador até ao 2º piso onde se situava a sua cela. Só depois de entregue o tabuleiro às mãos de Sua Excelência a minha missão estava terminada.

O comandante do Forte, um major na reserva, amante de cães de caça e uma espécie de governador plenipotenciário daquele lugar - destacava soldados para todos os dias irem correr com os seus animais - tinha uma patente inferior ao mais ilustre prisioneiro. Esse facto, além de mal entendido na esfera castrense, não era bem aceite por Otelo e as discussões entre eles, ao que constava, eram frequentes.

O meio prisional é um lugar de alta conspiração e mexerico e tudo o que por lá acontecia, muitas vezes de forma deturpada, corria em modo sibilante os ouvidos de reclusos e carcereiros. Assisti a muitas situações deploráveis que me dispenso agora de relatar, pois, quase quarenta anos volvidos, a poeira do tempo assentou sobre os factos e muitos dos protagonistas provavelmente já não fazem parte do mundo dos vivos.

O Otelo que eu recordo era uma pessoa serena, impecavelmente fardado e aprumado, com aspeto visivelmente intelectual, acantonado numa cela individual recheada de livros e jornais, servida por um corredor anexo onde ele todos os dias praticava corrida. Nunca vi a porta da cela fechada. Além do mais, tinha uma hora de recreio só para si, num pátio interior, e nunca o vi misturado com outros reclusos. Tomava as refeições na cela e convivia com o seu advogado e com as constantes visitas. Escrevia incessantemente.

Frequentemente visitado por jornalistas estrangeiros, diplomatas, políticos e gente ilustre, era sem dúvida a coqueluche de Caxias e retirava todo o protagonismo ao comandante do estabelecimento prisional - que desejava para ele, Otelo, o tratamento idêntico conferido à restante população prisional. Diziam que essa era a maior fonte de conflitualidade entre eles.

A minha relação com o militar de Abril, à época eu tinha 23 anos, a principio bastante formal, com o fiar dos dias foi-se tornando amistosa e não tardou a que um sorriso aflorasse o rosto do experiente combatente. Quis saber o meu nome, o que estudava, onde morava e o que ia fazer depois da passagem pelo Exército. Ficou radiante quando lhe disse que gostava muito de ler e de viajar.

Jogámos xadrez juntos e não lhe ganhei uma única vez. Falámos sobre literatura, cinema e mundanidades. Nunca aflorámos temas políticos e jamais eu lhe perguntei se era culpado das acusações que o faziam estar preso. Não digo que tenha ficado uma amizade entre nós, pois apenas convivemos durante alguns meses e depois disso nunca mais o vi. Ainda guardo um livro do Woody Allen "Side Effects" que ele me deu com uma simples dedicatória: "Abraço. FMCaxias, 1985". Fiquei com a impressão de que era um homem de emoções contidas, mas muito afável e com uma inteligência superior.

Antes de ser transferido para outra unidade militar fiz questão de me ir despedir dele. Deu-me um aperto de mão tão forte que julguei que me ia quebrar os ossos. Hoje, volvidos 37 anos, dia da sua morte, fui à estante buscar o livro do Woody Allen e tenho-o aqui ao meu lado. Devolvo-lhe, também por escrito, o abraço que na altura me deu.

Culpado ou inocente, certo é que ele foi amnistiado e mais tarde inocentado de todos os crimes de que foi acusado. A nossa História jamais o esquecerá pois foi um homem que se notabilizou e merece ser recordado como o protagonista de um tempo que ajudou a fazer.

RIP


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