terça-feira, 6 de julho de 2021

Subsídios para o plano vacinal

 



O Plano Nacional de Vacinação, iniciado nos anos 60, numa altura em que a Poliomielite matava, foi determinante para a diminuição das taxas da mortalidade infantil em Portugal, que são atualmente das mais baixas da Europa. Mas o que muitos não sabem, porque não são desse tempo e não passaram por isso, é como se processava a vacinação na tropa, ainda no início dos anos 80.

Eu comecei a cumprir o Serviço Militar Obrigatório em 1981, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, e depois por lá fiquei, contratado pelo Exército durante cerca de 10 anos, que era a forma expedita que os estudantes universitários masculinos da época encontravam para prosseguir os seus estudos e ter uma fonte de rendimento possível. Ainda não existiam mulheres a cumprir o Serviço Militar Obrigatório, ou contratadas, no Exército, o que veio a acontecer muito pouco tempo depois de eu ter terminado o meu vínculo. Mas isso são outros quinhentos.

Recordo-me perfeitamente do dia da vacinação na EPI de Mafra. Estava uma manhã invernal e o frio cortante era acompanhado pelo sibilar do vento glaciar que corria os claustros do convento. Numa vasta capela interior, transformada em enfermaria improvisada, sentados num banco de madeira corrido, em grupos de vinte, de tronco nu, o cabelo quase rapado e os olhos esbugalhados com os exemplos das anteriores vítimas, preparámo-nos para a carnificina.

O cortejo abria com um socorrista transportando debaixo do braço uma terrina cheia de agulhas. Atrás vinha um auxiliar que, com um maço de algodão a imitar uma esfregona, besuntava-nos as omoplatas com tintura de iodo. Depois, a figura sinistra do espetador de agulhas - verdadeiras bandarilhas, a ajuizar pelo tamanho e algumas seguramente rombas. Finalmente aparecia um último elemento com as seringas que ia desajeitadamente enroscando às agulhas há muito espetadas nas omoplatas dos instruendos.

O que sempre me fez suportar alguns calvários que passei na Escola Prática de Infantaria de Mafra, conhecida pela sigla EPI – vulgarmente apelidada entre os magalas como Entrada Para o Inferno ( nas Operações Especiais em Lamego ainda passei maiores tormentos), foi o facto de ver que os meus colegas estavam a passar pelo mesmo e aguentavam estoicamente tudo - pelo menos a maioria, já que alguns, a meio da recruta, baixaram à Psiquiatria e foram internados no Hospital Militar da Estrela.

No final, posso afirmar categoricamente que o tempo que passei no Exército, quase uma década, pelas amizades que por lá fiz e experiências inolvidáveis, foram dos tempos mais felizes da minha vida. Nunca posteriormente na sociedade civil, pela competição e mesquinhez que se vive dentro das empresas, consegui encontrar a camaradagem salutar e o bom humor que vivi nos tempos da tropa.

A dose cavalar que me inocularam na EPI, uma espécie de coquetel vacinal contra uma série de maleitas, foi seguramente a responsável por durante toda a recruta nunca me ter constipado ou adoecido, apesar de andar constantemente debaixo de chuva e enlameado até aos ossos. Sem essa inoculação não acredito que fosse possível ter suportado as agruras diárias porque passei durante esses penosos dezasseis meses.

Agora a que assistimos à maior campanha vacinal mundial de todos os tempos e que temos um Vice- Almirante à frente de uma Task Force, não me surpreenderia que não tivesse já passado pela cabecinha do nosso Vice a adoção de estratégias militares mais expeditas para imunizar o povinho que se queixa de ficar longas horas na fila: uma série de banquinhos de madeira corridos (há muitos nas igrejas e era só pedir emprestado) podiam muito bem iniciar um esquema vacinal em série. E porque não adaptar também algumas ideias do Taylorismo para a racionalização do processo produtivo, neste caso o ato de imunizar, evitando a lentidão na produção e um esforço desnecessário?

A ideia de um processo de imunização, todos sentados num banquinho de madeira, que começa com um besuntador de tintura de iodo e acaba com o enroscador de seringas, previamente espetadas nas omoplatas dos recrutas, se servisse para vacinar o dobro da população, era mais uma prática castrense de outros tempos a ter em linha de conta.

E depois não me digam que eu não contribuo com subsídios para o processo vacinal.

Siga a Marinha, nosso Vice- Almirante!






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