terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Élio Isidoro Catalão Marofas

 Élio Isidoro Catalão Marofas abominava o seu nome. Nunca se conformou com a bizarria que aflorara a mente da sua mãe, aquando do momento do seu batismo, que se lembrara de o presentear com tal graça. Há muito tempo que sentia bastante desconforto, associado a uma sensação de cansaço, falta de energia e vitalidade, para realizar as suas atividades habituais. Quando lhe perguntavam o que se passava, respondia que não era capaz de explicar. Mas não se sentia bem. Desde há um tempo, começara a colecionar objetos antigos e apenas se interessava por discussões e leituras sobre o tema. Comummente, em conversas entre amigos da sua geração, recordava a sua infância e juventude e os produtos culturais da época, os tempos em que fora realmente feliz. Entabulava este tipo de conversas como uma forma de escapismo e o presente pouco lhe interessava. Os outros escutavam-no, sabendo-o um bom orador e peroravam para que continuasse.

 
A saudade é o que fica daquilo que partiu, dizia ele, daquilo que já não é mais. Saudade é ausência, é o sentimento de vazio que fica daquilo que se foi. Mas às vezes, a saudade é um vazio tão grande que ocupa muito espaço dentro do coração, e aperta tanto o peito que acaba transbordando e escorrendo pelos olhos. São as lágrimas, o líquido precioso que escorre em abundância. Dizem que a palavra saudade, bem portuguesa, não tem tradução noutras línguas. Eu concordo em absoluto. Há quem diga que é sinónimo de nostalgia, mas, no rigor dos termos, não é verdade. Nostalgia representa mais uma sensação de saudade idealizada, por vezes irreal, por momentos vividos no passado, associado a um desejo sentimental de regresso. A idade traz-nos a saudade dos momentos vividos na nossa juventude, quando ser feliz era fácil com tão pouco e tudo era uma descoberta.
 
E o presente, a esperança, Marofas? – Perguntavam-lhe os amigos.

O presente é para mim uma espera por nada, uma delonga desnecessária, acrescentava ele. Toda a minha vida boa se desenrolou no passado. O que se passa agora já não me diz respeito. Limito-me a sobreviver. Camus dizia que toda a infelicidade dos homens nasce da esperança. A esperança é o começo da morte. A minha infelicidade começou quando cresci, quando perdi a inocência das coisas. Se não esperançarmos não nos faremos infelizes. E é possível viver num mundo que existe apenas dentro da nossa mente, alheios ao que nos rodeia no exterior. Num certo momento da vida, não é a esperança a última a morrer, mas a morte é a última esperança.
 
E porque não te matas, Marofas? Porque não colocas um ponto final nesse teu atroz sofrimento de viver? – Perguntavam-lhe os amigos. Porque não tenho a coragem de ser coerente a despeito de estar ciente desta forma de pensar, dizia ele.
 
As conversas decorriam habitualmente à mesa de um café, cercados pelo ruído provocado pelas vozes dos clientes e do trânsito que corria incessante na avenida principal. As palavras de Marofas soavam a um longo solilóquio. Uma espécie de declamação subjetiva que não incitava à participação dos outros tertulianos.
 
Já tinha passado mais de um mês desde a sua última preleção. Na mesa do costume, a mais perto da porta de saída, os convivas habituais estavam quase todos presentes. Comentava-se, ainda, a tragédia. A coragem, infelizmente, surgiu-lhe. A necessidade de buscar a morte como um refúgio para um sofrimento que se lhe tornara insuportável. Um mergulho para o nada. Ainda custava a acreditar. Élio Marofas ingerira mais de 100 comprimidos de Orfidal, uma benzodiazepina que proporciona relaxamento muscular, sedação e efeito tranquilizante. Encontraram-no, passadas duas semanas, morto, na cama, meio despido e em adiantado estado de putrefação.
 
À mesa, nesse dia, todos os restantes tertulianos concordavam que a esperança corresponde à aspiração de felicidade existente no coração de cada pessoa e que quem perde a esperança mais profunda, perde o sentido da sua vida; e sem esperança viver não tem sentido. Faltava, no entanto, alguém com poder oratório capaz de verbalizar esse ensejo por todos partilhado e de sustentar com firmeza essa tese. Todos concordavam que ao Élio tinha faltado a esperança e uma eventual vacina contra o desânimo, capaz de lhe fazer desejar viver e esperar a felicidade. A necessidade da esperança era um dogma por todos aceite, bem como a validade do ato de viver. A pergunta surgia então como inevitável: haveria algum deles, em algum momento, capaz de verbalizar tão bem quanto o Élio este sentimento por todos partilhado? Ou seria fatalmente necessário ser-se como ele: deprimido, desesperançado e nostálgico, para possuir a verve necessária à boa prosa das palavras certas e incertas?



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