sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

A rua é a nossa casa


Leiria. Uma manhã friorenta, apesar do céu azul e do sol faiscante. O mercado está repleto de gente. Os pregões das ciganas estiolam o ar: " Uma nota de dez euro, uma nota de dez euro! É pr'á cabar! Vamos embora, freguesas! É pr'á cabar o ano!"

É sábado. O facto de ser o último dia do ano é um acaso. Os ritos da cidade continuam iguais aos de todas as vésperas de domingo. A cidade regurgita com pessoas que se movem em todas as direções. Os vendedores ambulantes e as lojas esperam fazer bons negócios.

À beira do Lis, cruzo-me com os habituais corredores, marchantes e passeantes de cães e, junto à margem, observo alguns pescadores, useiros e vezeiros naquelas andanças, que aguardam pacientes que o isco seja mordido.

Mais adiante, depois da Ponte Europa, construída aquando do Euro 2004, sob o viaduto por onde passa o IC2, deparo-me com os vestígios do acampamento de uma grande família de ciganos romenos. Os nossos concidadãos da União Europeia, com o beneplácito das autoridades competentes - em Portugal, e muito bem, não há leis que punam a mendicidade ou o direito a dormir na rua - fizeram do local sua moradia temporária. Diz-se que são nómadas e, como tal, é impossível colocá-los em albergues temporários ou casas de acolhimento, pois contraria a sua opção sublime de vida.

As pessoas passam indiferentes e eu sou a única ave rara que se presta a fotografar e indignar.
Avisto um carro de bebé, roupas de criança estendidas ao sol, muitas mantas e agasalhos diversos, carroças de animais, tudo rodeado por uma imensidão inestética de lixo e dejetos. Vou fotografando e pensando.

Será que os direitos destas crianças a ter uma infância condigna e cuidados de saúde primários, não serão mais fortes do que a opção tomada pelos seus progenitores e que as atinge? Creio que sim.
Será que durante a noite, com temperaturas quase negativas, condições de salubridade nulas e alimentação deficiente, não há um favorecimento doloso do perigar da saúde e da vida destas crianças, a quem não é permitido tomar outras opções? Creio que sim. O que faz o Estado? Nada. O que dizem as leis sobre isto? Dizem muita coisa.

Um pouco por toda a Europa, as leis que visam punir os sem-abrigo por estes viverem na rua estão a multiplicar-se. Ou são passeios que ganham “obstáculos” que os impedem de ali permanecer ou são multas e penas de prisão, bem ao jeito americano, país com tradição neste tipo de abordagem. De forma gradual, alguns países europeus começam a seguir esta tendência. Todavia, também existem novas e honrosas excepções, nas quais Portugal está incluído.

Proliferam as notícias sobre nações que tomaram medidas chocantes de criminalização dos sem-abrigo, penalizando aqueles que fazem da rua a sua casa (como se viver desta forma não fosse uma sanção suficientemente forte). Estas estratégias estão a ser adotadas por governantes de alguns países, que pretendem “mascarar” as cidades, tornando-as aparentemente mais “limpas”, mas que não resolvem o problema da mendicidade.

Questionar estas medidas é pertinente, tendo em conta que uma das principais consequências da crise é precisamente o aumento da pobreza, e que a rua é um destino comum a um número crescente de pessoas que deixaram de poder pagar as suas contas. Esperava-se, desta forma, que os governos estivessem mais sensibilizados e disponíveis para dar apoio aos mais carenciados, e não o oposto.
Pergunto: como e por que motivo é que estas normas são aprovadas, numa Europa aparentemente civilizada e que respeita os direitos humanos, fazendo deles tantas vezes uma bandeira?

No que concerne aos ciganos romenos, que por livre e espontânea vontade, decidiram que a rua é o seu teto eterno e renegam acolhimento, desde que: não sujem o espaço público; não invadam propriedade privada; não obriguem crianças a partilhar os seus ritos; não poluam o meio ambiente, mormente os fluxos de água e os solos; e, por último, não infrinjam normas legais, tudo o mais lhes deve ser permitido. O que restar, obviamente.

Penso eu de que...

Leiria, 31 de dezembro de 2016

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