sexta-feira, 6 de maio de 2011

Papadoc - ou o tempo da má língua

Nos meus tempos de universitário, à data que a conheci, ainda estudante do 3º ano da licenciatura em Direito, na FDLisboa, era uma rapariga a quem chamavam malevolamente a 'Papadoc'. Os crimes alegadamente cometidos pela Papadoc universitária, a jurista do amor, nada têm a ver com as barbaridades perpetuadas pelo médico ditador, que governou nos anos 60 do século passado o Haiti e a quem chamavam carinhosamente Papa Doc. Reza a história que, enquanto clínico, o João Semana haitiano assistia gratuitamente as populações pobres; mas, mal chegado ao poder, revelou-se um ditador sanguinário, capaz de esmagar todos os que ousaram fazer-lhe oposição. Mas esta senhora, que hoje me inspira a prosa, talvez por a ter encontrado recentemente num Centro Comercial, cujo nome verdadeiro não vou divulgar, é hoje uma distinta cinquentenária, mãe de filhos, titular do cargo de promotora do Ministério Público, algures numa comarca deste país. Dizem as más línguas, facto por ela nunca desmentido, que alegadamente terá feito as cadeiras mais difíceis do curso na 'horizontal' - muitas vezes também na 'vertical' e em outras posições indizíveis, honra lhe seja feita. Essa postura assumida de jurista do amor, concubina de mestres e doutores, presenciada por inúmeros alunos, entre os quais eu me incluo, uma vez que a distinta foi minha colega de turma em dois anos consecutivos, valeu-lhe o epíteto de ‘Papadoc’. Tanto quanto se sabe, por gosto ou necessidade, a estudante só 'papava' doutores, daí o epíteto, mas também alguns mestres, diga-se em abonos destes, mercando o seu cobiçado corpo em troca de uma licenciatura feita à velocidade da luz. A autonomia universitária, uma bela desculpa para impedir sindicâncias, mas, sobretudo, a cumplicidade no silêncio de alunos, professores e funcionários da Faculdade, fez com que nunca ninguém fosse responsabilizado. Os seus deméritos eram comentados à boca cheia nos corredores, nas bibliotecas e nas salas de convívio, mas a maioria das vezes era um coro de vozes de inveja - de um lado a brigada masculina, a que se juntava, do outro, o ressabiamento e a indignação das fêmeas universitárias.

Cada vez que a deusa do amor entrava na biblioteca principal, geralmente ao fim da tarde, àquela hora cheia como um ovo de estudanteca, um sussurro discreto espalhava-se pela sala ampla, acompanhando a sua entrada triunfal no templo do saber livreiro. Sempre de cabeça levantada, os seios fartos mal contidos num corpete de decote generoso e um sorriso luminoso e triunfal a pairar-lhe na face, a ‘Papadoc’, Veni in tempore, anunciava-se e impunha a sua presença.

Penso que tudo o que se passava a divertia imenso. Estou certo, aliás, que endoidecia de prazer ao aperceber-se do quanto era odiada, desejada e invejada. Esse misto de sentimentos aumentava a sua popularidade, alimentava o ego extraordinário que possuía e tudo isso fez dela um mito. Dos actos em privado, entre a jurista do amor e as pessoas que lhe aprouvesse, ninguém é visto nem achado; o mesmo não se diga das inúmeras vezes em que foi apanhada em flagrantes, a horas tardias, pelas gordas funcionárias de bata cinzento-rato, nas catacumbas da Faculdade – as salas mais recônditas e escabrosas, reservadas aos juristas dos anos pioneiros, segundo a lógica feroz, à época vigente na Faculdade, que só ganhavam o merecimento de discentes de primeira categoria a partir do 4º ano; altura em que podiam ocupar as salas dos pisos cimeiros, com janelas amplas para a rua.

Recordo com saudade os tempos da Faculdade e já sei que quem ler esta mini crónica vai achar que o prosador virou língua de trapos, escolhendo por temática assuntos de alcova e lapa caprina, mas o relato revelou-se um apelo irresistível.

A Papadoc, que eu vi e cumprimentei, mal-grado os seus cinquenta e alguns anos, bem casada e mãe de filhos já crescidos, ainda conservava a beleza de outrora, a áurea de cristal, os mesmos olhos azuis profundos a comporem-lhe um sorriso malicioso e  um corpo invejável. Não me admira nada que, onde quer que passe, ainda que continue a despoletar o ódio do corpo feminino e o desfraldado de línguas do corpo masculino. Se me dissessem que, no tribunal, todos os criminosos colocados perante a insigne magistrada gritam: 'prenda-me!' 'prenda-me', tal não me colheria de surpresa.

Longa vida à ‘Papadoc’, que é o que eu mais lhe desejo e que continue a arrasar por muitos e bons anos.

Sem comentários:

Enviar um comentário