Por vezes temos uma ideia na cabeça que queremos desenvolver através da
escrita. Pode ser um pensamento que surgiu à hora do almoço, depois da jornada
de trabalho, ou algo que anda a ruminar há algum tempo na nossa mente; mas
chegada a hora de escrever, outra coisa diferente, ambígua, até, jorra-nos dos
dedos. Começamos a escrever e a nossa mente divaga, já que a nossa existência é
feita de um contínuo de pequenos acontecimentos, a maioria sem grande
importância nem impacto. De vez em quando, muito de vez em quando, o fluir dos
dias agiganta-se, abrilhanta-se e, então, dizemos que aconteceu algo de
especial e guardamos datas na memória, sentimentos quentes e ternos ou
assustados e infelizes algures dentro de nós. Alguns encaram com leveza os dias
que correm. Lembram-se dos tempos da infância e sorriem condescendentes com o
que foram. Partilham com os amigos histórias improváveis, exageradas, cheias de
feitos e de graças e divertem-se com isso. Olham para sonhos que não se
cumpriram e objetivos que não se alcançaram e o coração não se aperta nem
descem véus de angústia ou derrota. Para outros, o passado, o futuro e,
sobretudo, o presente desgastam. Há uma queixa fina e virulenta, uma espécie de lamuria, que se torna numa inquietação permanente e sem objecto que corrói, que
transforma todos os momentos em tempo perdido, como se a felicidade e a vida
estivessem sempre noutro lugar. Viver pachorrento ou inquieto, tranquilo ou
perturbado, não é bem uma opção. Em cima de um temperamento que nos calha em
sina, acumulam-se experiências e formas de lidar com o que nos acontece, que
nos transforma exatamente no que somos: nós mesmos, únicos, diferentes,
extraordinários por isso. Somos quem somos, por acaso e sem escolha, já que não
nos soubemos fazer de outra maneira. O que nos afirma como únicos é, no
entanto, a nossa forma particular de dizer não e, a partir daí, reconstruirmos o (nosso) mundo - se é que ainda vamos a tempo. Temos
de fazer um esforço, sermos pró-activos, e não estarmos sempre à espera de uma
melhoria das contingências exteriores para fazermos algo por nós. Mas tudo
isto, depois de escrito, soa a receita fácil, já que é impossível fazer a
nossa vida retornar à pureza dúctil de uma página em branco. E, uma vez mais,
como se vê, para o escritor é mais fácil prescrever soluções generalistas (para
os outros) do que as considerar para si mesmo.
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