domingo, 17 de novembro de 2019

Nada de novo



São 13h00. Saio para ir almoçar. Uma chuva torrencial, diluviana, abate-se sobre o meu carro e obriga-me a circular com cuidados redobrados. No meio da estrada, no final de uma descida, deparo-me com uma poça de água tão funda, que dou graças à divina providência ter optado por comprar um veículo com alguma altura em relação ao chão. No restaurante baratucho onde normalmente vou aos domingos, uma grupo sessentão de excursionistas assenta arraiais. Devem ser peregrinos de Fátima ou coisa que o valha. A empregada descreve-me a ladainha do cardápio sempre igual. Decido-me pelo bitoque de vaca. Penso que se um dia for autopsiado, provavelmente atribuirão ao excesso de bitoques a causa provável para a minha morte: "overdose de bitoques", ficará escrito no certificado de óbito.

Agarro no Correio da Manhã. Dou uma vista de olhos pelas notícias. Os useiros casos de violência doméstica, um milionário alemão que fazia orgias, presumivelmente com menores, na sua mansão do Monte Estoril, as novidades futebolísticas que preenchem duas páginas do jornal, um grupo de javalis que cheirou e destruiu cocaína no valor de quase 20 mil euros, numa floresta na Toscânia, em Itália. Nas páginas cor-de-rosa segue o folhetim da Ágata. O "Chico das Cassetes", seu ex-marido, presidente honorário do Desportivo de Chaves, apaixonou-se por uma boneca trinta anos mais nova e já lhe ofereceu um apartamento, um Mercedes, pagou-lhe umas mamas novas e uma lipoaspiração. Os filhos do "Chico das Cassetes" não gostaram e a peixeirada instalou-se. O que mais magoa a Ágata é que o seu Chico até mandou retirar o hino do Chaves onde ela cantava!

Termino o bitoque e preparo-me para pagar. Quero fugir da algazarra provocada pelos excursionistas e voltar para o meu mundo. Sentado no balcão, a olhar para mim, imóvel, encontra-se um velho. Tem os cabelos compridos, oleosos, espalhados pelos ombros, como os tentáculos de uma alforreca gigante que o mar trouxesse à areia e ali rebentasse numa golfada suja. A mulher das limpezas, indiferente aos comensais, agarra numa vassoura e começa a varrer diligentemente o chão do restaurante. Lá fora, a chuva continua a fustigar os transeuntes que correm para se abrigarem. Faço o caminho de regresso. Penso no velho que olhava obstinadamente para mim. Terá família? Imagino-o a morar num prédio degradado, ou numa família sem recursos, talvez doente, só e desamparado. É com certeza mais um cidadão que vagueia pelos espaços e tempos da nossa derrota coletiva, vítima da solidão e da desesperança, com uma infância esbulhada, onde improváveis sonhos lhe afloram a mente como último resíduo do humano. Esforço-me por renunciar aos meus pensamentos, mais do que por mero egoísmo, por um imperativo de sobrevivência e concentro-me nas minhas tarefas para o resto da tarde. O caminho de regresso é o mesmo e atravesso a mesma poça de água profunda com as mesmas cautelas. Vou tocar baixo elétrico, que é o meu derradeiro entusiasmo musical. Afinal, são sempre as projeções que fazemos, as esperanças, que nos dão alma para viver e continuar e as escolhas fazem com que cada um de nós seja um ser irrepetível e, a seu modo, incomum.

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