terça-feira, 2 de novembro de 2021

Os serviçais

 

Vivemos num mundo em que a afirmação individual dos sujeitos se faz pelo que têm. Não basta ser inteligente, bonito, elegante, simpático, charmoso, espirituoso, culto, desembaraçado, pleno de sentido de humor, divertido, ou tudo isso em doses massivas. Espera-se que essas habilidades, esses "skills", ou características, rendam, dêem frutos e sejam significados pelo meio envolvente como adquiridos de mais-valia.

A velha discussão sobre a dicotomia entre o ser e o ter parece, pelo menos por agora, resolvida de uma forma expedita: o ter está ao serviço do ser e o ser é uma abstração monumental a que muitos poucos têm acesso. Valorizam-se os sinais exteriores e o que serve de moeda de troca numa rede complicada de significações: dinheiro, um título nobiliárquico, académico, um cargo importante, um nome sonante.

Não ter é o mesmo que não ser. Logo não ter qualquer coisa com jeito, qualquer coisa que os outros reconheçam e avaliem como boa ou desejável, é a desclassificação suprema. É assim que casar com uma determinada mulher ou homem com características selecionadas é uma aquisição de estatuto. E o problema desta expansão possidente não está na aquisição mas na perda.

Ninguém gosta de perder o que quer que seja. E perder pessoas que, para lá do seu valor intrínseco, sejam um leit motiv para a razão da existência, é, para alguns imbecis, igual a perder os sinais exteriores de uma qualquer riqueza que julgavam possuir.

Como é difícil admitir que o sentimento de posse em relação a pessoas seja dominante e mais difícil ainda assumir que se quer alguém mais pelo que ela significa do que pelo que ela é, confundem-se a amizade e o amor com outras valências quaisquer que nada têm a ver com a nobreza desses sentimentos.

E foi por este motivo, e por outros, que neste final de tarde, dominado por uma persistente má disposição, saí da farmácia próxima à minha casa sem aviar o medicamento que carecia, só porque o funcionário - um tinhoso serviçal de Doutores, Engenheiros, gente importante e afins - descuidou o atendimento de uma velhinha que, coitada, mal se conseguia expressar, só porque entrou no estabelecimento, imagine-se?! Um Doutor! Uma pessoa de título, um médico, a quem ele de imediato fez uma vénia, gesto que lhe acentuou ainda mais a sua pronunciada escoliose - uma doença crónica e progressiva tão comum em todos os serviçais que atingem o Nirvana cada vez que beijam o chão que os aludidos finórios pisam. P. que o pariu! - pensei, mas, claro, nada disse. Limitei-me a sair sem o medicamento que precisava e ainda mais nauseado do que quando entrei.


Sem comentários:

Enviar um comentário