sábado, 19 de fevereiro de 2022

Almada revisitada

 



Encontro-me em Almada, na casa materna, de onde saí ainda muito jovem, e reencontro uma cidade que mantém o mesmo registo dos últimos anos: uma urbe devastada pelos grafittis, repleta de lojas encerradas, com as montras vandalizadas, as ruas sujas e esventradas, repletas de gente que se cruza com indiferença, no meio de prédios amontoados, muitos deles com as fachadas degradadas pelas marcas do tempo.

Um caldeirão de raças e de diferentes culturas, que nos últimos anos veio habitar a cidade e os seus arredores, transformou Almada numa cidade heterogênea, longe da antiga urbe harmónica e pacata que conheci. A cidade acabou por ser vitíma do mesmo destino a que a Amadora, Loures, Massamá, ou qualquer outro grande agregado populacional satélite de Lisboa, foram sujeitas. A vinda de populações culturalmente diferentes, trouxe consigo um potencial de desarmonia com a cultura anterior e um aumento substancial da criminalidade e da insegurança.

Um trânsito caótico coabita com o metro de superficíe, que cortou literalmente ao meio as principais artérias da cidade, e as pessoas movem-se rapidamente pelas ruas, fugindo aos atropelamentos que, não raro, sucedem, por vezes de forma fatal.

O Café Central, fundado em 1956, outrora um ex-libris da cidade, tem-me como cliente há precisamente 50 anos. Hoje já pouco resta do carismático café, situado na antiga Praça da Renovação. O espaço sofreu tantas alterações ao longo dos anos, que só quem conheceu Almada nos anos 60, 70 e 80, se consegue recordar de uma cafetaria toda forrada a madeira, as paredes pintadas de amarelo suave, com um piso inferior, cujas escadas tinham um corrimão, também ele de madeira, ao fundo a sala dos bilhares (na cave os matraquilhos) e os empregados trajados de calças pretas, camisa branca e laço lustrado pelo uso, dançando entre as mesas pelejadas de clientes, com uma bandeja de inox nas mãos.

Eu era um dos clientes habituais da bica e copo de água e permanecia - sem fazer mais despesa já que o dinheiro era escasso -, juntamente com grandes grupos, nas mesas do piso inferior, em useira algazarra e diatribes diversas. Nunca nos conseguiam expulsar com o argumento de que não consumíamos, já que nas mesas em que nos sentávamos, iam embora uns e chegavam outros; havia sempre consumo: café e copo de água e nada mais.

Hoje, à distância de 50 anos, desde os primeiros momentos que me recordo de lá entrar, encontro-me sentado na esplanada do Café Central (morei durante muitos anos a 20 metros do mesmo), nesta manhã prazenteira e com sol, a escrevinhar estas palavras e a ver quem passa. Há sempre caras conhecidas. Os traços fisionómicos estão enrugados pelo rolar do tempo, mas são demasiado familiares para me passarem despercebidos. Ainda agora passou por mim o António Manuel Ribeiro dos UHF, em passo apressado com um papel qualquer na mão e fingiu que não me reconheceu.

Tento abstrair-me do tempo presente e a minha mente viaja até ao final dos anos 70. O Central fechou e é sexta-feira à noite. Na Praça da Renovação começam as street race habituais e os espetadores, os noctívagos de serviço, onde eu me incluo, enchem a esplanada. As mesas e as cadeiras de ferro à época não eram arrecadadas, mesmo depois do fecho do café. A gritaria é imensa e os ânimos estão exaltados. Já se bebeu e fumou muita coisa. De repente, ninguém sabe porquê, cadeiras e mesas começam a voar, pessoas envolvem-se em lutas. O rally continua, indiferente ao buliço, até que aparece o "nívea", o patusco volkswagen da bófia, com tinónis estéreis e em grande algazarra. No seu interior, quatro polícias gordos, fardados de cinza rato, armados de cacetetes e apitos, vêm preparados para pôr termo aos desacatos. Os street racers desaparecem e toda a gente se escapule da esplanada, perdendo-se nas ruas adjacentes. Horas depois, após a policía ter regressado à esquadra, em regra sem conseguir fazer detenções, os mirones regressam e recomeçam as corridas de carros madrugada dentro. E tudo se repete.

As minhas memórias já quase se esfumaram. Cada tempo tem os seus ritos, os seus modos, as suas vivências. Os anos loucos do pós 25 de Abril, já fazem parte de um acervo de recordações que é um privilégio de poucos. Comparar a Almada de hoje com a cidade de Leiria, onde habito há 13 anos, seria o mesmo que comparar um apartamento de estudantes, onde reina a maior desorganização, com o espaço cuidado de uma dona de casa zelosa. Mas se calhar a cidade está bem assim para os que nela hoje habitam. São os seus habitantes que fazem a cidade. Eu, confesso, morei na Almada de outros tempos e não consigo sair desse desajuste.



Almada - Antiga Praça da Renovação e Café Central ao fundo

19022019


Sem comentários:

Enviar um comentário