quarta-feira, 16 de março de 2022

A solidariedade não pode ser uma palavra vã

 



O dia amanheceu gélido e em tons ocre. Nuvens de poeira vindas do Norte de África atravessam os céus de Portugal continental e o resto da Península Ibérica, tudo pintalgando de areia. Dizem os entendidos que se trata de um fluxo vindo de sul, induzido pela “depressão Célia", daí a alteração da cor do céu. Indiferente, a guerra segue os seus sinistros trâmites. As forças russas estão mais perto do centro de Kiev. A diplomacia continua a ser um caminho para colocar fim ao conflito: o Presidente Zelensky afirma que as negociações de paz com a Rússia estão mais realistas. O número de refugiados ucranianos ultrapassou esta quarta-feira os três milhões.

No meu percurso habitual para o ginásio, não resisti passar perto do Estádio Dr. Magalhães Pessoa, um mamarracho que mais parece uma construção gigante de lego, projetado pelo arquiteto Tomás Taveira - aquele que protagonizou um dos maiores escândalos sexuais dos anos 80 em Portugal e que ficou celebérrimo pelo ditoche, que à data se lhe atribuiu como resposta, quando uma das muitas amantes com que deleitava no atelier lhe perguntou acerca da origem de uma luzinha vermelha a piscar: “It’s a Sony!”. Mas isso são águas passadas que não vêm ao caso e o sucesso dos programas televisivos com as Candid Camera (não confundir com a câmara do Cândido) foi um epifenómeno que também já teve os seus momentos de glória.

As palavras são como as cerejas, diz o provérbio, e, por mais que me esforce, por incontinência verbal, certamente, não consigo dissociar a visão do espólio artístico do arquiteto Tomás, do realizador porno-caseiro Taveira. É difícil esquecer a bizarria novelesca que em 1989 pôs o país inteiro a rir às lágrimas, quando a imprensa revelou imagens do arquiteto a ter relações sexuais com várias mulheres. Vídeos que ele fazia sem o consentimento das participantes e depois mostrava aos amigos. Desde então, pouco mais se ouviu falar do homem.

O estádio do Casanova, construído para o Euro 2004, possui uma capacidade de 25.000 lugares, totalmente cobertos, e, apesar dos concertos pop/rock e outros eventos de cariz cultural que nele têm ocasionalmente lugar, nunca justificou o investimento feito aquando da sua construção. São décadas de despesismo que desequilibram o orçamento camarário e dinheiro que podia ser aplicado em fruições muito mais proveitosas para a população de Leiria.

Mas, nos últimos tempos, tenho finalmente assistido à utilidade mais nobre de tão grandiosas e desocupadas instalações. Uma parte considerável do edifício serve atualmente de quartel-general para a vacinação contra o Covid-19 e muitos camarotes estão a servir de instalações provisórias para as dezenas de refugiados ucranianos que estão constantemente a chegar à nossa cidade. O porno-arquiteto Taveira desapareceu da ribalta – o ex-Casanova terá atualmente mais de 80 anos – mas um edifício da sua lavra conhece hoje as mais dignas funções - para além dos jogos futebolísticos que não tocam o meu coração.

Pelo sim, pelo não, já que a minha idade não permite que me aceitem nas fileiras como combatente – com algumas horas de treino, tenho a certeza que voltava a afinar a pontaria de uma G-3 e conseguia despachar alguns russos. Afinal foram quase 10 anos que estive no Exército – deixei o meu contacto na receção do recinto desportivo e a oferta pro bono da minha experiência de alguns anos como professor de Português para estrangeiros.

Todos podemos fazer algo positivo, caso queiramos. E, mais do que promover rezas e santinhos em prol de quem se encontra a sofrer na Ucrânia, ou alinhar em manifestações com bandeirinhas a acenar, é tempo de sermos proativos e fazer com que a solidariedade e o empenho voluntário não sejam na nossa boca apenas palavras vãs.

Hoje, na receção do estádio, sacos com oferendas de bens alimentares e outras utilidades empilhavam-se a cada momento; e nos escassos minutos que lá passei, duas pessoas apresentaram-se como voluntárias para o que fosse necessário.

Há gestos, atitudes, bondade imensa, aquilo que por todo o lado vejo, que me fazem sentir orgulho de ser português e ter nascido num país que, acima de tudo, preza os valores humanistas e democráticos. A minha atitude, tão escassa, é um nada comparada com o mar de bondade com que me deparo por uma fatia ampla da população. São estas atitudes que nos fazem sentir humanos, solidários, e conferem todo o sentido à nossa existência. Para mim, são sobretudo, fonte de inspiração e um exemplo a seguir.












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