sábado, 26 de março de 2022

Pizzas e peripécias



Comecei a ganhar o hábito nefasto de, em especial aos fins-de-semana, agarrar no telefone e encomendar uma pizza à Telepizza. Já começo a conhecer a voz de uma grande parte dos atendedores e até já sei de cor as perguntas que me vão fazer: "Telepizza boa tarde!" O que vai desejar? Não quer aderir à nossa promoção? Na compra de uma pizza média bananás, oferecemos-lhe dois pães de alho e uma Coca-Cola de litro". Regra geral, recuso quase sempre as promoções, pois trata-se de mais do mesmo: venenos gastronómicos a que se acrescentam outros ainda mais poderosos.
 
Encomendar uma pizza é prático, pouco salutar, confesso, mas evita uma enormidade de chatices tais como: ter de tomar banho, vestir-me e sair de casa para ir ao restaurante, sempre que a fome aperta; ou, pior, abrir o frigorífico, rezar para que haja lá dentro alguma coisa comestível, cozinhar, colocar a loiça na máquina, limpar as bancadas da cozinha e os utensílios que utilizo - geralmente são sempre muitos. Além do mais, descobri que o gato Ruca adora pizza. Uma vez dei-lhe um bocadinho a provar, já que ele não parava de miar, ao mesmo tempo que ensaiava pulos com destino no meu colo, e o bichano adorou. Foi com uma enorme sofreguidão que devastou quase metade de uma fatia, enquanto emitia uns miados estranhíssimos que denunciavam um estado de inteira satisfação.

A propósito das pizzas, há uns largos meses atrás, mais ou menos na altura em que comecei a aderir a este american way of life, tal como hoje, encomendei uma pizza. Passados trinta minutos, que é o tempo médio da chegada do moto-boy, estando eu já completamente esquecido de que fizera a dita encomenda, tocam à campainha da entrada. Como tinha ido tomar banho, e já estava todo ensaboado, tive de rapidamente tomar uma chuveirada e enrolar-me numa toalha para ir abrir a porta. Sem o cuidado prévio de espreitar pelo orifício da porta, para ver quem estava do outro lado, deparei-me com uma jovem moto-girl, que, apesar do meu pedido de desculpas pelo facto de lhe aparecer todo molhado e enrolado numa toalha, não se mostrou minimamente surpreendida ou afetada por me ver em tais preparos. Enrolado no pedaço de turco, com a mão esquerda a segurar firmemente a toalha, tentei com a outra mão fazer as operações necessárias à receção da pizza, a saber: entregar-lhe o cartão de débito, digitar o código do multibanco e rececionar a pizza e a bebida. Mas as coisas na parte final não correram pelo melhor. Resultado: a toalha caiu e só tive tempo de fechar bruscamente a porta, que se encontrava entreaberta.
 
Refeito do sucedido, cobri-me, abri de novo a porta e pedi imensas desculpas à senhora pelo acontecimento. Para meu espanto, a jovem continuava impávida e serena e afiançou-me que "não vira nada". Reiteradas as minhas desculpas, por ela aceites com um largo sorriso, recolhi-me, bastante envergonhado com toda a situação, não fora a menina pensar que eu era algum tarado que engendrara tudo aquilo.
 
Ainda com a consciência pesada da descortesia que havia cometido, fruto da minha total falta de cuidado, decidi a telefonar à Telepizza para, junto do gerente, relatar o sucedido e reiterar uma vez mais as minhas desculpas. Do outro lado do telefone, a reação foi demolidora: "Não se preocupe. A Sandra, tal como todos nós, está mais do que habituada a esse género de situações. Aliás, faz parte do trainning do pessoal a preparação para cenários semelhantes. Olhe, ainda andava eu nestas andanças há pouco tempo, fui chamado a um quarto de hotel aqui de Leiria para fazer a entrega de uma pizza e, acredite pois é verdade, tive de esperar que o casal terminasse... para poder fazer a entrega da pizza. Não fique preocupado e conte sempre connosco!".
 
Se eu já estava com a consciência pesada ainda pior fiquei. O gerente acabara de me contar tudo aquilo sempre com um tom de riso incontido na voz, como se a minha preocupação não tivesse qualquer razão de ser e fosse antes fruto de um zelo exagerado. Senti que, dai em diante, iria fazer parte do extenso anedotário dos entregadores de pizzas de Leiria. E creio, inclusive, que a minha fama como encomendador de pizzas ficou traçada. Já estou a imaginar um possível diálogo lá na loja: "Olha, o exibicionista de Vale Sepal, aquele da toalha, o do 4º D, acabou de encomendar uma bananás. Quem é que pode lá ir? Vais lá tu, Sandra?" "Eu? Porque não mandas antes a Deolinda? Ou será que os tarados têm sempre de sobrar para mim?"
 
[Nesse dia, depois do sucedido, recordo que deixei cair a toalha ao meu lado sob os lençóis desarrumados da alcova. Vi o meu corpo exposto, húmido, espalhado no colchão e não senti vergonha dele. De seguida, descobri uma vestimenta confortável, resolvido a não sair de casa da mesma forma que vim ao mundo; e hoje sei que, deste singular acontecimento, ficou apenas uma memória vaga, para regalo e escrita]

Leiria - 2009*

*Atualmente não como pizzas e creio que jamais as comerei de novo. Pizzas e água suja do capitalismo, vulgo Coca-Cola, são substâncias que jamais entrarão no meu organismo.



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