sexta-feira, 27 de maio de 2022

A vontade de poetar



Tenho muita vontade de tornar a escrever poesia, mas, mais do que a prosa, a escrita poética exige desertos de solidão e um estado de espírito especialíssimo que não se arranja quando se quer. A poesia é sempre um derrame da alma de quem escreve, um estado de exposição franca, um corpo esventrado, engalanado com laivos de estética.

Muito do que se escreve fica na gaveta, ou em rascunho, mas, tarde ou cedo, alguém certamente acaba por ler os nosso sobejos. Nunca destruímos completamente tudo o que escrevemos, ainda que imputemos falta de qualidade literária às nossas palavras; mas deixar rastos faz parte da natureza humana. Mesmo depois da nossa morte, há sempre quem rebusque o nosso espólio e fique surpreendido com o que encontra, acabando por ficar a conhecer mais do nosso âmago: facetas de personalidade impensáveis, corações eternamente inquietos, seres mal-amados, infâncias marcantes, mentes distorcidas e tortuosas. Foi assim com Fernando Pessoa e com tantos outros génios da poesia e não há motivos para pensar que possa ser diferente com poetas menores.

Em vida, mostramos as caves das nossas emoções somente àqueles que reputamos merecedores de tomar a ciência sobre o nosso Eu: a nossa carne viva. Pouco interessa que os destinatários dos (nossos) poemas os entendam e os recebam como interpretações autênticas dos mesmos, pois, essas só o autor poderia desvendar; e, nalguns casos, nem mesmo ele conseguiria explicar cabalmente tudo o que quis dizer. Interessa, outrossim, que quem leia os poemas sinta as palavras e lhes atribua sentidos possíveis para além da estética que lhes está subjacente.

Escrever poesia é um pouco como radiografar o nosso interior, a forma como a nossa sensibilidade se organiza, como subjetivamos o que nos rodeia, ou os sentires que povoam a nossa mente, e depois expo-los a uma luz que permita o olhar dos outros. Não deixa de ser tudo um grande delírio, um universo metafórico onde as palavras vertidas aparentam, não raro, uma pálida correspondência com a realidade. Há verdades, mentiras, ficções, desejos, crenças, malformações, tudo num turbilhão. Há máscaras na poesia, tal como no teatro existem disfarces, trajes, artefatos, cenários e o palco onde se desenrola o processo teatral. Na poesia o palco é a nossa mente. As palavras fluem da nossa mente, entontecidas, em voragem, quase sempre perfumadas com odores agradáveis como os que se desprendem das acácias em flor.

Mas o disfarce é constante, irrevogável. O poeta é um perito na arte do embuste e recusa conscientemente a linguagem denotativa. Por isso se diz que a poesia representa, de certa forma, a antítese do normal valor gramatical das palavras. O poeta prefere as praias da metáfora, da alegoria; e, não raro, delicia-se com o perfeito exagero. É o encenador da trama criada pelas suas palavras, mas também pode ser um ou vários dos personagens do enredo que criou; pode ser uma forma anímica, ou não; ou, ainda, outra coisa qualquer. O limite não é o absurdo, mas a inestética; e o desvalor das palavras é sempre um pecado.

Tal como a prosa, também a poesia pode enfermar de prolixidade, abusar da adjetivação, das imagens, das tautologias e usar de franco mau gosto com vocábulos rebuscados. A tentação do facilitismo e o seguidismo de "modelos de sucesso" nunca nos abandonam por completo. E isso é mais visível nos poetas menores. Mas na poesia valora-se sempre a sinceridade de quem escreve e, mais do que o evitar dos lugares comuns, das rimas fáceis e das construções frásicas delicodoces, é a sua autenticidade que nos conquista e faz amá-la; e isso mais do que outra coisa qualquer.



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