sábado, 21 de maio de 2022

Na praia



Prezo muito a doce penitência dos pescadores solitários, fiéis, sempre, junto à sua cana, vigiando o dançar periclitante da linha, como pastores vigilantes de um rebanho de peixes, num prado eterno feito de mar. De quando em quando, desviam os olhos do horizonte e rodam o carreto de nylon verde, ensaiam um lançamento longo, mais junto às rochas negras forradas de algas, em águas mais afortunadas, onde os cardumes se alimentam.

As canas estão fincadas na areia, em suportes próprios. São artes antigas, instrumentos pontiagudos que vão adelgaçando à medida que se aproximam da extremidade. Do lugar donde as vejo, sempre que o vento clama mais forte os seus caprichos, curvam-se com graciosidade, como bicos de tucano. Ao seu lado, muito perto, baldes vulgares, repletos de água do mar, servem de depósito a peixes que já não nadam: jazem argênteos, no fundo, numa quietude de impressionante morte fresca, mas a vibração da água, por breves momentos, parece que os vivifica; mas é mentira.

Sigo sempre no sentido contrário à zona dos chapéus-de-sol, caminhando contra a luz. Fujo das áreas concessionadas, das barracas «Olá», laranja e escarlate; das cadeiras «Pepsi» azul noite. Raspo-me das areias movediças da mundanidade, pelejada de gentes, pauzinhos de gelado, caricas, beatas de cigarros e beatas da vida. Quero-me na praia onde não pontificam os vestígios humanos – não quero «ser-humano» – na língua da areia onde o mar suserano, em frenesim, sem parcimónia, traga despojos de presenças alienígenas (a mim).

Tenho a caneta bem fincada na areia, um pouco acima da linha da vazante, abrigada da rebentação. É uma caneta cinzenta, paper-mate, uma flexigrip ultra, chiquérrima, aborrachada, daquelas que não magoam os dedos, mas, por vezes, magoam a alma. Ela é muito mais pequena do que as canas que observo em meu redor.

Os pescadores distam a alguns metros de mim. Estão dispostos ao longo da praia, em espaços intervalados, cinquenta metros distantes uns dos outros. A minha flexigrip não verga na ponta quando a brisa entorna mais densa. As canas sim.

Aguardo a chegada dos advérbios frescos, de olhar esbugalhado; das frases coragem; dos parágrafos comestíveis, dispostos a disputar-me o domínio, mas eles não vêm. De tempos a tempos, olho para a ponta esférica e aguçada da minha flexgrip. Um raro movimento, um estremecer por breve que seja, enchem-me o coração de esperança e brilho azuláceo. Agora o silêncio. O som do mar. O piar absurdo de uma gaivota que se afasta. As franjas brancas das ondas, ao longe, que aparecem e desaparecem. Um navio a fingir, no horizonte.

[Sempre quis ter uns óculos de sol da cor da felicidade, pois já tenho um chapéu da cor do mar. O mar existe?]

Passaram por mim duas mulheres com os corpos densamente povoados de desejos. Os pescadores não pestanejaram. Permaneceram quedos, os olhos postos no horizonte brilhante. Esperam. Desenleiam as linhas das canas como quem desembaraça os escolhos da vida. Os chumbos estão pendurados no nylon verde como pêndulos de relógios de cuco antigos – O Pêndulo de Foucault não é de chumbo.
Cheira-me a abandono e sinto arrepios de luz pela espinha acima. A felicidade é um acontecimento. Dizem-me que não a devo procurar mas sim esperar. Às vezes canso-me.

A minha flexigrip continua hirta, espetada na areia como um soldado perfilado na parada, mas a borracha que a envolve parece ter amolecido. Começa a desfazer-se, pingando gotículas de talento derramado que o mar depressa engole. Os veraneantes, lá longe, parecem vultos pré-fabricados. Movem-se em constância: para lá, para cá, para lá, para cá.

Os pescadores são agora sombras recortadas na contraluz e, com o dedo indicador, acompanho o recorte da silhueta de cada um deles, que me cabe na palma da mão. Os peixes – ainda aguardam por eles – de quando em quando, deixam-se morrer para viverem, ainda que por instantes, dentro de nós. Nós vivemos. Eles não.

Coloco o meu estetoscópio de sonhos e ausculto o pulsar das emoções que me rodeiam. Tomo o pulso à vida, paciente, e peço-lhe com delicadeza que abra a boca e faça: «Ah!». Vi a língua da vida! Ena! Que sensação! De seguida, agarro na minha máquina de fotografar ilusões e proponho-me captar momentos genuínos – um completo desastre! Fico-me pela película da memória. Apetece-me fugir.
Guardo a minha flexigrip, ou o que resta dela. Torno a casa com o mesmo peso com que cheguei. Concentro-me no regresso ao trivial, que é onde a maior parte das coisas se movem e estão à vista de todos. Basta-me sacudir toda esta areia de perseverança, que me incomoda, colocar a pequena mochila às costas e pôr no semblante o sorriso que sempre guardo para os momentos em que me quero parecer com os outros.

Não me despeço dos pescadores, nem do mar, nem do céu, ou da areia. Parto sem olhar para trás, pois sei que as despedidas deixam-me sempre angustiado. Um dia voltarei e, dessa vez, trarei uma cana a sério, muito isco, balde, e tudo o que é necessário para pescar. Por ora, só quero tornar a casa com os pés calçados de subtilezas, antes que cheguem as parábolas da noite e me perguntem o que é feito da minha farta pescaria.

Leiria - escrito no verão de 2006






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