domingo, 30 de janeiro de 2011

Novas leituras

[O pintor Oskar Kokoscka estava tão apaixonado por Alma Mahler que, quando a relação acabou, mandou construir uma boneca, de tamanho real , com todos os pormenores da sua amada. A carta à fabricante de marionetas, que era acompanhada de vários desenhos com indicações para o seu fabrico, incluía quais as rugas da pele que ele achava imprescindíveis. Kokoschka, longe de esconder a sua paixão, passeava a boneca pela cidade e levava-a à ópera. Mas um dia, farto dela, partiu-lhe uma garrafa de vinho na cabeça e a boneca foi para o lixo...]  In Posfácio. Edições Quetzal.

Como é meu hábito desde criança, gosto de ler vários livros ao mesmo tempo. Com este frio cortante, torna-se desagradável andar na rua e o tempo convida ao recato do lar e, naturalmente, à leitura. Comecei o ano com a descoberta de alguns autores portugueses cuja escrita desconhecia. Fiquei agradavelmente surpreendido com a inventiva dos novos escritores que, apesar da sua juventude, revelam bastantes qualidades literárias. Refiro-me, por exemplo, a Afonso Cruz e ao seu mais recente livro,  'A Boneca de Kokoschka', que é uma narrativa pungente, passada em Dresden, durante um dos maiores bombardeamentos da II Guerra Mundial - uma das obras que ando a ler a par de outras.

Este jovem escritor, nascido na Figueira da Foz, com apenas trinta e nove anos de idade, já conta no seu palmarés com o prestigiado Prémio Camilo Castelo Branco. No seu livro, que estou quase a terminar, o autor usa um estilo de escrita inovador, bastante desenhado, que parece simples a principio,  mas que  se vem a revelar, com o fiar da história, de uma certa complexidade. Há várias histórias que se cruzam e é preciso estar atento para não nos dispersarmos. O livro começa com a morte de um rapaz por um soldado, que cai sobre o pé do parceiro de bola, Isaac. Este, assustado, foge e acaba por se esconder num esconderijo na loja de Bonifaz Vogel, um vendedor de pássaros. Desconhecendo a existência do esconderijo, Bonifaz começa a ouvir uma voz que o aconselha nos negócios, sem nunca questionar a origem dos conselhos. Mais tarde, quando a cidade de Dresden é bombardeada, Bonifaz surpreende-se ao ver Isaac a sair do esconderijo, e fogem juntos. Na fuga encontram uma rapariga, Tsilia, outra sobrevivente do bombardeamento e os três prosseguem juntos. Sem nunca abandonar Bonifaz, que vai degenerando mentalmente, Isaac junta-se a Tsilia. O seu andar ficará sempre marcado pelo arrastar de uma perna, provocado não por uma lesão, mas pelo peso da cabeça do amigo morto pelo soldado alemão. 

Estou quase no final e, confesso, acho o autor completamente original na forma como escreve, talvez por ele ser também músico, ilustrador e realizador publicitário. Creio que será esse mosaico de valências  que contribuem para fazer do Afonso Cruz o escritor ecléctico que é. Gostei bastante do registo da narrativa e da forma suis generis como a história é contada. A nova literatura portuguesa, aliás, não pára de me surpreender, sempre pela positiva, claro.


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