segunda-feira, 20 de março de 2017

Gostar ou não



«Gostar ou não, eis a questão. Como é que se define o amor? Como podemos saber se o que sentimos por esta ou aquela pessoa é mesmo amor e não qualquer outro estado intermédio ou subproduto do sentimento em questão? O amor está tão na moda que as pessoas o procuram e desejam como um bem de primeira necessidade. O amor é a água do coração; sentimos que simplesmente não podemos sobreviver sem ele. E de cada vez que a vida nos obriga a atravessar desertos amorosos, enchemos os cantis de distrações e paliativos, alguns destrutivos (droga, álcool, excessos vários), outros mais construtivos (meditação, desporto, viagens, amigos) até que um oásis de afecto se desenha no horizonte.

É claro que o oásis pode ser uma miragem, mas isso só saberemos quando lá chegarmos. Há oásis que parecem enormes e se revelam exíguos, outros que pensamos serem desinteressantes e se transformam em lugares bestiais, outros que são confortáveis, porém aborrecidos, e outros ainda que se assemelham a um jogo de PlayStation2, cheios de desafios e de aventuras onde é preciso manter sempre a concentração para conseguir vencer obstáculos e passar ao próximo nível.

As boas histórias são feitas de obstáculos, da mesma forma que o amor também se constrói na adversidade? Desconfio sempre das histórias amorosas em que tudo é sempre muito difícil. O amor é um mistério insondável, mas tem os seus sinais inequívocos e na verdade não existe o amor per si, existem provas de amor. Quem não o mostra é porque não o tem e, se não o tem, não vale a pena tentar fazer omeletas sem ovos.

As relações amorosas que começam com grandes dificuldades porque ele nem sempre está disponível ou ela é frequentemente assaltada de dúvidas não medram; ou a coisa flui ou emperra e, como diz o ditado, o que nasce torto tarde ou nunca se endireita.

O que acontece é que às vezes estamos tão carentes que interpretamos sinais de desamor como prenúncio de amor, dando ao outro o benefício da dúvida. No amor não há dúvidas quanto à natureza do amor. Podem existir outras, do estilo ‘gosto dela, mas não gramo a família nem como molho de tomate’ ou ‘ele é adorável, mas vou ter de lhe comprar boxers novos porque odeio aqueles slips que ele usa’, mas não pomos em causa o amor que sentimos.

Citando o Fernando Alvim numa das suas recentes crónicas, quando se gosta de alguém temos sempre rede, nunca falha a bateria, nunca nada nos impede de nos vermos e nem de nos encontrarmos no meio de uma multidão de gente.

Quando se gosta de alguém, ouvimos sempre o telefone, a campainha da porta, lemos sempre a mensagem que nos deixaram no vidro embaciado do carro desse Inverno rigoroso. Quando se gosta de alguém – e estou a escrever para os que gostam – vamos para o local do acidente com a carta amigável, vamos ter com ela ao corredor do hospital ver como estão os pais, chamamos os bombeiros para abrirem a porta, mas nada, nada nos impede de estar juntos, porque nada nem ninguém é mais importante do que nós.Um dos sinais inequívocos do amor é exactamente essa terceira entidade, o Nós, a consciência de que o Eu e o Outro formam algo que nos diferencia do resto do mundo. E o tempo que temos na nossa vida para Nós.»

(texto de Margarida Rebelo Pinto)

[Gostar ou não gostar da Margarida Rebelo Pinto, eis a questão. Eu gosto da sua escrita. Acho que a Margarida escreve bem, é uma mulher inteligente e, sem dúvida, percebe muito sobre o amor. Os seus detratores, muitos deles nunca a leram ou apenas o fizeram transversalmente; ou, pura e simplesmente, alinham na caçada intelectualóide que alguns parvalhões - ansiosos por algum protagonismo e sedentos de afirmação - lhe movem; porque fica sempre bem dizer mal da "escrita light" da Margarida.

A MRP é um sucesso de vendas. Não há dúvidas de que é uma escritora comercial, sem pretensões a grandes agastamentos filosóficos nem constantes demonstrações de erudição - vejam-se as crónicas de Pedro Mexia, Rui Zink, Mário Viegas, P. Coutinho, MEC, entre outros, arregimentados num grupo que, em em surdina, se revê nos cânones propalados pela nova direita iluminada de Portugal e nunca dispensam o recurso, quase psicótico, às demonstrações de grandíssima erudição anglófona, embrulhada na posse de uma cultura atual e ímpar.

Alguns desses cronistas, que eu leio e muito admiro, porque escrevem milhões de vezes melhor do que eu, valeriam o dobro se lhes restasse um nadinha mais de humildade e menos sobranceria. A vaidade e o narcisismo, quando assumem extremos, para além de perigosos são pouco salutares e acabam por nos fazer cair na falácia de nos julgarmos perto da perfeição.

Na arte de escrever tudo se passa como no velho Oeste: aparece sempre alguém que escreve melhor do que aquele que se julga a "prima donna" das letras e quando dispara é a matar.

Gosto de ler a Margarida, sobretudo as suas crónicas e o seu blogue. Ela escreve muito bem. É lúcida e fala do amor e dos relacionamentos entre as pessoas com um capital de saber que só quem já amou é capaz de entender e tão facilmente explicitá-lo.

Este seu texto, que tomei a liberdade de publicar no meu blogue sem o seu consentimento, mas devidamente referenciado, expressa, de forma simples e sublime, a súmula daquilo que eu penso sobre as relações amorosas entre as pessoas. Por me ter sentido tão sintonizado com as suas palavras, pela leveza e clareza do texto, não resisti a partilhá-lo convosco. Espero que gostem tanto dele como eu.]

Leiria - 2007



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