terça-feira, 22 de junho de 2021

Eu sei que hoje é terça-feira

 


Eu sei que hoje é terça-feira porque passo de mota na rotunda junto ao mercado do levante - que é um mercado que se monta e desmonta todos os dias. Sim, um mercado onde os comerciantes, todos os dias, montam as suas bancas de manhã para à tarde as desmontarem – e ainda vejo os últimos feirantes a desfazerem o estaminé e a encherem até ao teto as carrinhas brancas com vidros foscos.

Disse-me um dia alguém, com conhecimentos nestes assuntos, que muitos feirantes, em especial os de etnia cigana, fazem das suas carrinhas brancas uma espécie de casas amovíveis, onde comem, dormem, fazem filhos e transportam o material que vendem, que é a principal fonte do seu sustento.

Não creio que este espírito nómada integral ainda esteja presente na maioria dos elementos desta etnia, apesar dos ancestrais costumes, pois felizmente a maioria já tomou consciência de que o sedentarismo, assentar arraiais, é necessário para que os filhos tenham educação escolar, tão essencial à integração social.

Dantes, e durante muitos anos, pelo menos até que um vereador mais iluminado, ou um funcionário subalterno com lampejos de inteligência, se lembrasse de mandar vedar o espaço do mercado com uma cerca, era costume, nos dias de feira, a cidade se encontrar envolta por sacos de plástico, que faziam evoluções e piruetas em rota livre, ao sabor do vento, até caírem no rio Lis ou espalharem-se pelas ruas circundantes.

Até dias recentes, operárias da Câmara Municipal, na sua grande maioria, senhoras com trajes verdes, fazendo vagamente lembrar as companheiras do Robin dos Bosques na charneca de Sherwood, com cabelos loiros e dentes d’oiro, diligentemente e com paciência de Jó - aquele fulano com uma paciência bovina que aparece citado num dos livros do Antigo Testamento – esfalfavam-se, duas vezes por semana, em correrias atrás dos malfadados sacos de plástico, que pareciam fazer-lhes fintas para não se deixarem apanhar.

Se lhes fosse perguntado, provavelmente nenhuma delas imaginaria que, deixando a Ucrânia, o seu futuro, entre outras coisas, passaria por bissemanalmente mover perseguições a sacos de plástico, durante longas horas, numa acolhedora cidade do midwest português.

A captura destas perigosas espécies poluidoras, proscritas por todos os manuais de ecologia, fazia-se quase sempre com sucesso, pese embora alguns saquinhos se escapulissem para longe do seu atento olhar. Os indómitos plásticos, não raro, passeavam-se nos dias seguintes pelo casco histórico da cidade, enrolando-se nas plantas e floreiras, terminado quase sempre a sua errática viagem na correnteza do Lis.

A maledicência é frequentemente o lugar-comum da crónica, pois a escrita é muitas vezes um exercício individual de catarse - o imperioso desabafo. Mas sabe bem mudar este estado de coisas, dizer diferente, fazer outra coisa.

Eu gosto dos imigrantes, daqueles que vêm para o nosso país para trabalhar, que se integram e passam a amar o nosso mundo como se fosse deles também. Gosto da diversidade cultural. Ela enriquece-nos, muda de forma indelével a nossa maneira de perspetivar o universo e a nossa forma comezinha de pensar. O mosaico cultural e étnico é sempre enriquecedor.

Eu sei que hoje é terça-feira porque abro a porta de casa e encontro nas escadas do meu prédio as funcionárias que semanalmente se encarregam das limpezas do condomínio. São, também elas, na sua maioria, imigrantes, oriundas de África ou do Brasil, que trocaram a sua terra natal por um futuro melhor em terras lusas para si e para os seus. Ocupam os elevadores com baldes e esfregonas, regam as plantas sequiosas, sempre em alegre cavaqueira, com boa disposição contagiante e um sorriso plasmado no rosto. E deixam atrás de si um rasto de cheiro a lavado e perfume.

Se eu pudesse, voava, elevava-me, só para não pisar o chão limpo e molhado das escadas, tal o enorme respeito que sinto pelo seu trabalho.





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