domingo, 11 de setembro de 2011

Limpópó em silêncio!


Acordei estremunhado, depois de umas escassas quatro horas de sono, com o barulho do arrastar de móveis. Os meus vizinhos do andar de cima, todas as manhãs de domingo, arrastam móveis de um lado para o outro. Não querendo acreditar tratar-se de um ritual dominical, ou de uma prática de sortilégios de feitiçaria, penso que será um excesso de zelo na limpeza, que faz com que a Dona não sei das quantas, se lembre de que pode haver pó atrás dos móveis. É evidente que existe toda a probabilidade de eu encontrar pó atrás dos móveis e das estantes. Mas limpá-lo todos os domingos? E às 07h00 da manhã? Domingo, para a prática cristã, é um dia santo e, por fundamentação bíblica e etimológica, é considerado o primeiro dia da semana, seguindo o sábado e precedendo a segunda-feira. Mas, na minha sentimentalidade, é somente aquele dia horroroso que antecede a odiosa segunda-feira. É ao domingo que tenho de fazer o exercício mental doloroso de tentar esquecer o meu Eu. Segunda-feira, é o meu heterónimo mais desinteressante quem vai ter de se levantar às 08h00 da manhã, fazer a higiene diária, tomar o pequeno-almoço useiro, no café do costume. E, depois, atirar-se às escrituras. Não sou Eu, como resulta evidente. Mas o chato da questão é que Eu vou ter de ir com ele - o que hei-de fazer? 

Limpar o pó em silêncio, mais do que um exercício de estilo, devia ser um aprendizado que todos dominássemos. Eu, por exemplo, limpo pouco o pó, e, quando o faço, sou tão silencioso e ineficaz que quase ninguém dá por isso. O silêncio vale oiro, mas infelizmente pouca gente lhe confere o devido valor. É no silêncio que melhor reflectimos, tomamos decisões, estudamos, descansamos ou conseguimos a verve suficiente para escrever algo de importante que tenhamos na cabeça. Às vezes sabia-me bem ter uma casa no interior do país, completamente isolada e rodeada de árvores sussurrantes, afastada da estrada principal e da aldeia, onde só se chegasse por azinhagas que mal permitissem a passagem de um automóvel. Instalar-me-ia lá com os meus livros, a minha música, as minhas guitarras, as minhas motas, um acesso à Internet, um gato, e creio que bastava. Mas a reforma ainda vem longe, ou não, e, depois da tomada de consciência da efemeridade da vida, dos acidentes de percurso, e da unnplanned travel experience,  há muito tempo que só sonho a curto-médio prazo. 

Entretanto, o guerreiro barbudo e hirsuto,  sempre de sobrolho franzido, que é o meu vizinho do andar de cima, já anda na rua a passear o cão. O barulho cessou. A mulher, coitada, não tem forças para dominar a coleira do doberman, quanto mais para arrastar móveis sozinha. Um extenso manto de nevoeiro,  cobrindo totalmente o bosque a tardoz da minha casa, foi o primeiro retrato que divisei esta manhã. Mas, pouco a pouco, já se conseguia destrinçar, ao longe, a estrada para Coimbra e a A1, ambas recortadas pela luz tímida do sol da manhã. Dois meninos corriam em direcção ao bosque e fiquei a mirá-los vagamente. Recordei a minha primeira caçada aos gambozinos. Não teria eu mais do que a idade daquelas crianças. Uns seis aninhos. Aconteceu, num bosque parecido com este das traseiras da minha casa, nos tempos em que ainda andava nos escuteiros. Convidaram-me e explicaram-me. Até me ofereceram o saco conveniente  e necessário para depois os colocar lá dentro. E, na noite da caçada, lá fomos nós, os Lobitos, acompanhados dos Exploradores e dos Caminheiros. Fiquei de plantão, junto a um morro escondido por umas altas silvas, mais um amiguinho Lobito. Entretanto já anoitecera. E, com uma lanterna na mão e o saco a jeito, lá ficámos nós à espera da chegada dos gambozinos, enquanto tiritávamos de frio. Era o início do outono e as noites depressa se tornavam frias. 

Foi das primeiras experiências choque da minha vida. Tomei consciência de que não podíamos confiar totalmente nos 'adultos' e, confesso, foi doloroso. Um colo precioso que, de alguma forma, se desmoronou. Hoje, já com a 'idade da razão', tudo me leva a crer que a experiência iniciática da caça aos gambozinos é realmente importante. Temos de apanhá-los. Temos mesmo. Seja lá como for. Pois, mais importante do que fazer limpópó todos os domingos, arrastar móveis e macular o silêncio, é prudente usar o tempo para  imaginar e sonhar. Por exemplo, estive mesmo agora a fazer um limpópó à minha mente, a exercitar as falanges, e a divertir-me um nadinha com estas singelezas que acabei de escrever. E agora vou passear de mota. As minhas vrumms vrumms vrumms, ao menos, nunca ganham pó.

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