domingo, 18 de setembro de 2011

Limpópó, Jorge!

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http://picaretaescrevente.blogspot.com/2011/04/em-busca-de-uma-empregada-domestica.html.

* Texto que, de algum modo, já abordara semelhante temática, prova das recidivas desta minha minha lassidão.

Não sou capaz de precisar o momento em que a preguiça, ignominiosa, se apoderou de mim. Certo é que não há dia que não olhe para o aspirador, para o pó que se vai acumulando no chão, nos móveis, e um pouco por todo o lado, para as formações montanhosas de roupa por passar a ferro, com os seus graciosos picos nevados de roupa branca, para os livros e as revistas, espalhados por todas as divisões, e não sinta uma culpabilidade aguda pela proporção que deixei que as coisas tomassem. Provavelmente foi daqueles deslizares suaves que vão acontecendo sub-reptíciamente, que se vão instalando e ganhando espaço até acabarem tão naturalizados, tão integrados, que quase poderia jurar que a minha casa esteve sempre assim. O que não é verdade. Falta-lhe aqui uma 'mão feminina', é certo, mas também é seguro que eu tenho duas 'mãos masculinas', tão ou mais capazes de desencadear uma clean revolution, como quaisquer mãos de mulher. Na verdade, tenho guardado o meu tempo livre para actividades prazenteiras - 'as pessoas como deve ser' devem estar sempre ocupadas a cuidar da sua realização e da sua felicidade -, e faço por esquecer, relegando para plano secundário, as tarefas chatas mas inevitáveis. Sem querer abdicar da gloriosa volúpia de sentir, no rosto e nos braços, os tímidos raios de sol desta tarde quase outonal, enquanto escuto o trinado dos pássaros nos ramos das árvores, e vejo a relva a crescer no prado que observo da janela do escritório, receio que a hora seja mais do aspirador. Não vale a pena procurar as falhas e os interstícios desta verdade, que, por tão factual, nem admite contradita: a minha casa precisa urgentemente de ser limpa. Quem dera, por vezes, que estivesse anunciada uma visita papal ao meu refúgio, ou de alguém cuja solenidade e olhar crítico me causasse tamanho embaraço, que me fizesse andar uma semana antes a limpar meticulosamente o apartamento. Parece que a esperança é o antídoto natural para o desespero e que o desespero é o sentimento derradeiro que inunda a alma e escurece e obnibula qualquer hipótese de futuro. Mas eu agarro-me poeticamente à esperança que uma vontade irreprimível de arrumar, limpar, organizar, e puxar o lustro aos móveis, se apodere em breve de mim. Assim como já cai inúmeras vezes achando que não iria me reerguer e já me reergui inúmeras vezes achando que não cairia mais, tenho a certeza absoluta que, brevemente, a minha casa vai ficar tão limpa e arrumada como a Sala dos Espelhos do Palácio de Versalhes. Resta-me acrescentar, por natural descargo de consciência, que emprego o advérbio 'brevemente' no sentido literal do mesmo e não como um vã mensagem programática. Em tempo de manchetes vazias, no que à temática e imaginação da  minha escrita respeita, é licito, é justo, é imperioso mesmo que eu descubra o fio de Ariana que me abra uma janela por onde entre esta iluminada esperança. Mais do que guitarradas, acordes, escalas pentatótinas, escalas gregas, em Dó Maior, passeios de mota e navegação intensiva no Facebook, ou leituras inusitadas, o que me faz mesmo falta neste momento é segurar nas mãos uma esfregona, um cabo de aspirador e um pano do pó. Limpópó, Jorge!

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