quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

HSAC - Bloco de Cirurgia 6 - cama 11

Muito mais do que um mero gesto de cortesia que, desde pequenos, nos é apresentado como fazendo parte da 'boa educação', agradecer aquilo que a vida nos dá torna mais fluída a energia que existe no interior de nós mesmos. E este sentimento de apreciação grata relativamente aos benefícios recebidos é uma expressão da alma. Agradecer, sem ter de revestir necessariamente uma atitude de cariz religioso, é estar atento ao milagre que representa viver com saúde, energia e boa disposição. É dar graças à sorte, à felicidade que nos podem transmitir as pequenas coisas boas que nos vão sucedendo; e, sobretudo, consciencializar o quão relativa pode ser a nossa (pequena) dor face a sofrimentos alheios bastante mais significativos. Há frases, pensamentos recorrentes, que já nos parecem gastos, tanto o uso que lhes damos, mas que não perdem, ainda assim, actualidade. É verdade que não existe nada melhor do que a perda de algo valioso, que no dia-a-dia tomamos por trivial, para nos fazer percepcionar com humildade a importância que revestem para nós certas coisas. Faltando-nos a saúde, sentindo-nos invadidos pela dor, à  mercê da ajuda dos outros para nos locomovermos, fica comprometida a nossa autonomia e a nossa liberdade -  dois dos dos valores que mais prezo. E em virtude de certos dramas que vivi neste mais de meio século de existência - alguns deles, aliás, continuam, ainda hoje, a ser territórios de silêncio - compreendi finalmente que só a vida vivida no instante presente, sem desperdiçar uma gota que seja do seu precioso líquido, me pode confortar e fazer-me alhear da questão da morte. Quando ela chegar é a voragem da inevitabilidade que viajou até mim, mas até isso acontecer, quero-me feliz e fazer felizes os que me são queridos.

Num hospital público central, na enfermaria de um bloco cirúrgico, ganhamos todos um estatuto de igualdade. É uma espécie de democracia imposta por um desígnio comum. Não há doentes com primazia face aos demais, nem relevam os títulos académicos ou os meios de fortuna de cada um. Todos somos pacientes a aguardar uma cirurgia ou a recuperar de uma cirurgia. E, com excepção dos poucos que não abdicam de usar o seu pijama pessoal, a maioria usa o tradicional pijama às riscas azul claro, one size fits all, com a sigla do hospital bordada no bolso direito da camisa. Uma vez que a lavandaria não consegue dar vazão à quantidade de pijamas que a todo o instante são trocados, já que a maioria dos doentes estão entubados para receberem soros e medicamentos, e com drenos que os sujam de sangue e outros fluidos corporais, não existe uma grande preocupação em atribuir aos internados uma roupa interior à medida da sua estatura, o que é de algum modo compreensível. As trocas por números mais concordantes fazem-se de seguida, a pedido dos interessados, caso existam medidas disponíveis. Somos todos, como na célebre canção do Zappa, 'pijama people'; e, como tal, sentimos esse espécie de estigma pairar sobre nós. Mesmo em época de crise económica e fortíssimas restrições orçamentais, felizmente não encontrei menos amor e dedicação por parte do pessoal auxiliar e das equipas de enfermagem. Os médicos, uma classe profissional endeusada ao longo dos tempos, face à condição de eterno elo fraco, nessa relação desajustada, que representa o doente  -  por vezes, o paciente quase sente a obrigação de mendigar ajuda para a sua enfermidade - vão cumprindo com zelo as suas tarefas técnicas, mas longe de se envolverem emocionalmente com os pacientes. Faz parte da imagem de 'superioridade natural' que fazem jus denotar, essa postura algo distante, por vezes, até, com laivos de arrogância [mas, diga-se com justiça, nem todos são assim e as generalizações são sempre perigosas]. No entanto, a minha apreciação geral é francamente positiva no que concerne ao acolhimento que me foi ofertado no HSAC. Daí a minha extensa reflexão no parágrafo inicial e a certeza de que, ainda assim, considero-me um privilegiado face a tanta dor que presenciei. Que a boa sorte guarde todos os doentes com quem convivi, durante este curto internamento, e que deixei para trás, alguns já sem esperança alguma no olhar; outros, tal como eu, menos mal. Bem hajam todos. 

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