quarta-feira, 5 de abril de 2017

Nunca percebi os teus olhos

Nunca percebi os teus olhos. Hoje começou mais uma noite outonal, com seu riso de feiticeira, a recolher os cansaços, a estender as suas sombras, onde só o frio habita. Tu telefonas para me dizer que estás a desinteressar-te completamente da tarefa árdua e chata de viver. Que tens sentido uma dor teimosa no lugar que presumo seja o teu coração. Uma dor lancinante que te esfarela. Nem consigo atinar com a razão porque hoje te falo. Já passou tanto tempo. Quando procuro entender a teia de acasos e erros, de brutalidades e absurdos, em que se transformou a tua vida, voltam-me à lembrança as conversas que mantínhamos no fiar da tarde, em que as nossas bocas se abriam só em diritambos, lendo os dizeres, como se fossem instantes de rosa, perfeitos. Nesse tempo o meu amor por ti existia. Tu eras o cheiro das flores, o cume dos montes, o inescurecível céu azul, puríssimo e sereno, o orvalho no limbo das folhas, o sol poente. Tu eras a minha poesia. O que aconteceu depois tu sabes. Cada um seguiu o seu rumo e trilhou os caminhos que entendeu. Vivi muito tempo no escuro de mim sem me interrogar, mas curei-me de ti. Não raro, recordava os teus olhos de amêndoa e os lindos cabelos compridos que penteavas, mirando-te num espelho minúsculo, oval, que trazias invariavelmente na mala e que cristalizava e multiplicava a luz, tornando-te filha do sol. Amei-te, sim, mas, confesso, nunca entendi os teus olhos. Estava certo que tinhas folhas de sol nos cabelos e um fragmento de céu no olhar. Mas hoje já nem sei. E, passado tanto tempo, comunicas-me a tua desistência, a mim que há muito decidi continuar até ao fim, ainda que raso como a lama.

Leiria - 2010

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