segunda-feira, 17 de abril de 2017

A propósito dos biscoitos de canela

Não me incluo no género de pessoas que criam rotinas severas no que respeita a frequentarem sempre os mesmos supermercados, mas o Lidl seguramente que já integra o roteiro dos meus locais habituais de compras. Gosto de consumir alguns produtos que por lá encontro e não são só os preços acessíveis que me cativam. A mescla popular com que me deparo cada vez que lá entro: gente despretensiosa, vulgar, ignota de luxos, apenas interessada em encontrar artigos de primeira necessidade, com utilidade real, muitas vezes catando moedas perdidas do fundo da carteira para conseguir pagar a conta, fazem-me sentir a relatividade do que significa «ser-se socialmente importante».

Cada vez sinto com maior convicção que é no seio dos humildes, dos deserdados – muitos deles nem têm acesso ao mercado, para quê falar-se de economia de mercado?! –, que ainda resta alguma pureza e humanidade; alguma valoração daquilo que realmente importa reter nesta centelha de vida que não passa de um conjunto de efemeridades, sempre ao sabor de contingências que, por vezes, escapam por completo ao nosso controlo. É muitas vezes junto dessa gente sem história, anónima como o ar invisível da tarde, que consigo sentir-me uma melhor pessoa.

O Lidl, por contraposição aos hipermercados de primeira linha, verdadeiros templos do consumo hodierno, funciona como uma espécie de "Grande Mercearia do Mundo Real", onde os mais pobres podem aceder aos consumíveis alimentares que mais se aproximam dos seus parcos rendimentos mensais.

Eu gosto das batas desengonçadas, amarelas e azuis, dos empregados do Lidl. Gosto de surripiar uma caixa de cartão vazia de uma prateleira, andar com ela ao colo e enchê-la de produtos. Não gosto de ver as caixas onde se pagam as compras, vazias, somente com dois funcionários a fazer as vezes de cinco, alinhando numa exploração consentida, ameaçados pelo espetro constante da perda do posto de trabalho: " Se não aceitares trabalhar por cinco funcionários, há mais de mil que cobiçam o teu posto de trabalho!".

Esta é hoje a chantagem em quase todos nós irremediavelmente vivemos, por nossa culpa e consentimento.

Acho curioso pensar nas formas díspares como somos tratados nos diferentes supermercados, desde o El Corte Inglês, passando pelo Continente, pelo Jumbo, até ao Minipreço, ao Lidl ou ao Plus. Os vários estratos sociais reconhecem-se nas gentes que frequentam os mais diversos estabelecimentos alimentares que pulsam pelas nossas cidades.

E foi este pensamento curto, a clivagem social metaforizada nos frequentadores habituais de certo tipo de supermercados, que me fez tomar consciência de que o mundo é um espetáculo a múltiplas dimensões e não uma caixa arrumada de coisas, bichos e gentes.

Somos um país do "Primeiro Mundo", usuário do Euro, versado nas tecnologias da comunicação, outrora, reconhecido nos mercados financeiros, como detentor de uma pretensa "estabilidade económica", democracia funcional e paz social, mas tudo isso já era. E que cidadania é a nossa quando eu me deparo com uma velhota, na fila, mesmo à minha frente, dizendo que lhe faltam cinquenta e cinco cêntimos para levar dois litros de leite e um pacote de bolachas para casa? Choramos? Ofertamos-lhe os cêntimos? Assobiamos para o ar? Ganhamos coragem e dizemos não à nossa vergonhosa indiferença?

Desço às minúcias do dia-a-dia, à indiferença que confrange, sempre que me deparo com situações deste género e tudo se torna para mim objeto de interrogação. Fiquei sabendo que nesta cadeia alimentar - o LIDL - os operadores de caixa ganham o salário mínimo nacional, para além de terem de desempenhar funções que caberiam, muitas vezes, ao triplo dos colegas, no decurso das oito horas seguidas que dura a sua jornada laboral.

São estes os novos tempos a que assisto à medida que a idade vai tomando conta de mim. Eu que só entrei no Lidl para comprar os meus biscoitos de canela favoritos, contendo glúten, como eles fazem questão de mencionar no rótulo da embalagem e saio de lá pesaroso e reflexivo. A injustiça é endémica e irrevogável, mas cabe a cada um de nós pensar no outro.

Leiria - 2011


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