sexta-feira, 9 de junho de 2017

Dos sentimentalistas e canalha semelhante




É um lugar-comum dizer que os escritores e poetas, ou os escreventes que aspiram a algo semelhante, amam a boémia como se esta fosse uma arte digna de ser enaltecida e cultivada. Diz-se (vox populis) que os poetas necessitam respirar, a plenos pulmões, o oxigénio embriagador da liberdade, talvez porque o sonho não admite nem muros nem fronteiras. Diz-se, também, não sem uma certa leviandade, retomando talvez o imaginário dos poetas românticos do século XIX, de pince-nez e punhos de renda, que os poetas são incapazes de amar com consistência uma só pessoa.

Acho tudo um absurdo e, mais do que um mito urbano – expressão condizente com os supetões da moda que assolam a nossa língua –, é tão-somente de uma questão de genuíno preconceito que se trata. Se existem pessoas capazes de amar com intensidade e viver de forma sublime o apaixonamento, são precisamente os espíritos poéticos, pois, não raro, conseguem, melhor do que ninguém, abdicar de pensar em si mesmos em nome do sentimento que nutrem. Não será essa a melhor postura provável perante o amor?

[As pessoas que conheço mais centradas em si mesmas, os ditos "amantes da liberdade", pouco ou nada têm de poético; são, antes, seres umbilicais, racionais, feéricos, calculistas, pouco dados a compromissos duradouros, que não abdicam, por ninguém, ou coisa alguma, dos seus hábitos e vontades enraizados; e, quando o fazem, é sempre a contra-gosto, com o sentimento vago de estarem a fazer um enormíssimo frete, tudo em nome de um altruísmo emergente a que urge acudir.

Devido à forma míope como encaram o mundo que os rodeia, tendem a incutir nos outros as suas próprias paixões, por forma a poderem livremente continuar a dar satisfação aos seus gostos pessoais, já que o abdicar de si mesmos é para eles uma demasia. Mais fácil é "conquistarem" os outros para o seu universo pessoal, por forma a não perderem o hobby, e, desse modo, poderem conciliar a "partilha" sem perderem pitada do seu egocentrismo]

O gosto pelas viagens, ou a necessidade de um tipo de evasão semelhante, não deve ser confundido com a inconstância ou a incapacidade de possuir sentimentos sólidos e duradouros por alguém. Viajar é um pouco como desdobrar a vida em várias vidas, é mudar de alma como de camisa, é iludir o tédio das rotinas diárias, pois não pode haver sina mais triste do que ver todos os dias as mesmas árvores, o mesmo céu, as mesmas fisionomias. Viajar é um pouco como trilhar o destino dos rios e dos regatos: fluir sem descanso, não beijando duas vezes a mesma pedra, não banhando duas vezes as mesmas sebes floridas, correndo e cantando por montes e vales. Parece uma contradição, mas é antes uma conciliação: o melhor remédio que existe para este género de tédio que assola as nossas vidas é a mudança de ambiente, talvez porque tenhamos a ilusão, ao vermos novas paisagens, que o nosso espírito se renova, abandonando, como fardos inúteis, as mágoas e as preocupações - na verdade, a "bagagem" que nos ocupa espaço na mente e no coração, acompanha-nos sempre, ainda que viajemos para as antípodas do lugar em que nos encontramos.

Uma característica que encontro amiúde nos ditos espíritos racionais, aqueles que em público se envergonham de expressar emoções, para quem conter a manifestação dos sentimentos é trés chic; e julgam boçais, primitivos, até, todos quantos acreditam no romance e na força da paixão, é a inveja absurda das pessoas sanguíneas, mormente dos poetas e de todos quantos têm a coragem de espraiar a necessidade de amar e de se sentirem amados.

Se por um lado os acham ridículos, grotescos, primevos, dotados de um lirismo insuportável e incapazes – segundo eles – de enxergar o mundo tal qual ele é; por outro, adoravam conseguir endoidecer com uma luz primaveril, com o flauteado das aves na copa das árvores, ou com o arrulhar das ondas do mar no final de uma tarde estival.

Evitam a espontaneidade dos sentimentos como se se tratasse de um pecado, de uma volúpia proibida à sua condição de meio-monges, ações que vituperam em público, mas secretamente admiram. Não ousam, perante os outros, nem a sua reputação alguma vez lhes permitiria, dar gargalhadas insanas, manifestar tristezas pessoais, ou vibrarem de alegria. A cobardia, aliada a uma afasia sentimental e um provável vazio estético, empurra-os para a única situação possível: a tristeza calada em que tudo é silêncio e a alma que chora abafa as vozes do seu sofrer latente.

O mais das vezes, são almas forasteiras, que vagueiam sozinhas na espessura da noite, procurando a companhia sublime do amor. Não devemos descuidar dos seus infortúnios, nem tampouco nos sentirmos ofendidos quando escarnecem de nós. Afinal são eles quem precisa da nossa ajuda.*

* Escrito algures em 2006 (Um desabafo em carne viva)

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