terça-feira, 6 de junho de 2017

Os Indiferentes




Indiferente é todo aquele para quem tudo nem é bom nem mau e, para onde quer que vá, arrasta sempre consigo o despautério do prefixo de negação. Não manifesta preferências: é apático, insensível, por leveza e comodidade, ao contrário do indiferentismo. Esse sim, ao menos, acolhe o "ser indiferente" como uma alternativa consciente, uma escola da qual é pupilo voluntarioso.

Indiferentes aos problemas da solidão e do desejo de evasão, que domina a vida de três quartas partes das pessoas, o seu pensamento, a sua inquietação, estamos todos! Ninguém pode sozinho acolher a noite quando ela cai, assim como é impossível travar o rodar inexorável do tempo, o caminhar para a morte que nos espera implacável, em dia e hora incertos; o envelhecimento, o esboroamento dos acontecimentos mais felizes, os erros crassos irrevogáveis; a passagem das linhas que nunca deveriam ter sido transpostas.

Indiferente ficará, por certo, o incauto leitor deste purgante ligeiro, laxante de consciências mais pesadas do que o ar...

Indiferentes, todos nós:

Ao rio, que é o mesmo de há muitos anos, e está hoje mais quedo do que nunca; ao tráfego marítimo; às gaivotas que piam sem cessar; às nuvens que ora escondem o sol, ora o destapam; aos autocarros que baforam nuvens pretas de diesel queimado; aos transeuntes que estugam o passo e mantêm a cabeça baixa enquanto caminham para algum lado; aos carteiristas que deitam olhares profissionais às malas das turistas incautas... [uma banda composta por rapazolas ingleses, trajando camisa branca e calça preta, de cabelo palha, e borbulhas a florir em botão nos rostos colegiais, propõe, para o final da tarde, encher a praça que mais intimidade tem com o Tejo, com acordes soprados por instrumentos doirados que reluzem ao sol, transportando o néctar do som, depois de depurado por curvas caprichosas, para os sentidos de quem por lá passa e se detém com a firme vontade de os escutar.]

À regularidade simétrica com que os carros rolam na avenida; ao marejar da chuva leve da primavera nas folhas altas das árvores; ao som distante da cigarra que canta monocórdica algures no restolho; ao, quase impercetível, orfeão das rãs no lago fronteiriço; aos namorados que passam entrelaçados e trocam juras de amor eterno; à miudagem que bate com paus nas folhas de zinco que ladeiam e protegem a obra... [o guarda-nocturno continua imóvel no seu posto, frente à televisão, sem esboçar um único movimento, como se estivesse sob o efeito de uma hipnose que o tivesse congelado naquela posição].

As horas passam, o dia vai morrendo, o sol esconde-se, a escuridão toma conta de tudo e, às tenras horas da alvorada, os primeiros operários revisitam a obra: os entulhos da véspera, os sacos de cimento vazios caídos no mesmo chão, as areias que não foram mexidas, a não ser pelos gatos noturnos; os andaimes que não soçobraram com os humores do vento.

O guarda-noturno sai, passa por entre um grupo de operários de olhar extinto.

Indiferentes à gaivota que, já há algum tempo, paira sobre as águas do lago e, de repente, sem piedade ou hesitação, mergulha em voo picado sobre um dos patinhos bebés - esses que nasceram há dias e se julgam sob a proteção da mãe - e, sem preâmbulos, com duas ou três bicadas, mata o indefeso e engole-o de uma vez só. E, como se não bastasse, e não estivesse já saciada, passado instantes, repete o mesmo procedimento, desta vez com um ganso recém-nascido que tenta em desespero, subir para a margem.

Em redor, as pessoas serenas e continuam a falar umas com as outras, em amena cavaqueira, como se nada de extraordinário se tivesse passado. Foi apenas a natureza que pronunciou os seus ditames, sem mácula ou cor de pecado. A vida (a nossa, claro!) prosseguiu sem os hiatos destes momentos.

Indiferentes, aos farrapos de carne e pelo grudados no alcatrão quente, os automobilistas não diminuem a marcha, antes fazem pequenos desvios para não experimentarem o desagrado de sentir o baque das rodas dilacerarem o que resta do gato morto, horas atrás, por um camião demasiado indolente para desviar o curso da colisão fatal; e nem as coroas de flores que, amiúde, ornam, como memoriais de tragédias recentes, os separadores centrais, desencorajam a velocidade estonteante dos corredores da morte que se anuncia sobre rodas. Desviam o olhar do desagrado, aumentam o volume do rádio, assobiam músicas de acorde fácil, refastelam as costas no assento dos banco, fingem que o seu mundo é um aparte; nada daquilo lhes respeita, por princípio, por uma questão de sobrevivência.

Indiferentes, aos indigentes que se aninham uns contra os outros, sob cobertores de odores nauseabundos, junto à estação dos barcos: a bagagem aligeirada, uns poucos sacos de plástico de uma qualquer grande superfície; algumas caixas de cartão espalmadas; os pés nus, negros da fuligem da vida, tocando ao de leve garrafas de vinho esvaziadas na véspera, exalando a miséria de uma vida à sombra do desejo; os cabelos pegajosos, indomáveis a quaisquer escovas, fedendo a gado lanígero em dia de feira. Os passantes que se movem com o cuidado exagerado de não pisar algum corpo mais saliente. Desistentes, pensam eles. "Derrotados não são os que perderam mas os que, de alguma forma, desistiram de lutar". É esta a receita mágica, a aquiescência, que alivia a mente e impede ulteriores interrogações que provocam má disposição gástrica: o limiar da miséria da vida de uns, por oposição à opulência extrema de outros.

Indiferentes, à dor dos candidatos a passageiros que penam tempos infinitos nas filas apinhadas, quantas vezes à chuva, ao frio, à mercê dos elementos, os condutores dos autocarros passam, displicentes, com o rodado dos veículos nas poças de água que bordejam as paragens. Se algum passageiro de última hora implora que lhe abram a porta, o mais das vezes, viram a cara para o lado, assobiam para o ar para afastar à má consciência, e arrancam com a fúria de um deus alado, contentes com a sua atitude, gratos pela sensação de poder que lhes transmite o facto de poderem, com esse gesto, decidir a boa ou má sorte de alguém: "Deixa-me entrar?" "Não, não deixo, viesse mais cedo!".

A indiferença consciente é tão intrinsecamente humana que, antes de parecer uma deformação ética, uma povoação de egoísmo, mais se assemelha a uma das características, senão porventura à maior, da condição de sobrevivência individual da espécie de que fazemos parte. A escolha reside em ser ou não ser indiferente, como em Shakespeare. É óbvio que a opção tomada nunca será indiferente.*

*escrito em Lisboa, algures em 2005

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