quarta-feira, 7 de junho de 2017

O Síndrome do Corno Retroativo




Em 1973, um grupo de homens assaltou uma dependência do Kreditbank em Estocolmo e fez reféns os empregados do banco. O sequestro durou seis dias. Uma vez resgatadas, as vítimas mostraram uma estranha simpatia e empatia pelos seus raptores. Essa reação psicológica correu mundo com o nome de Síndrome de Estocolmo.

Tudo isto tem sido lembrado a propósito de um caso relativamente recente, passado com a austríaca Natascha Kampusch, raptada e fechada num quarto entre os dez e os dezoito anos e que, depois da sua fuga e do subsequente suicídio do raptor, demonstrou sentimentos bastante compreensivos para com o mesmo. Este síndrome não é mais que uma resposta psicológica que encontramos em situações mais quotidianas, como a violência doméstica, exercida quer a nível físico, quer a nível emocional, sobre muitas mulheres, que posteriormente não só se mostram capazes de desculpar o seu agressor, como também se convencem que a agressão pode afinal ser 'uma prova de afeto'.

São muitos os comportamentos de índole patológica que ganharam o nome de algo a que se ligaram ou do cientista que os catalogou.

O chamado Síndrome de Asperger, transtorno de Asperger ou desordem de Asperger, é uma síndrome do espetro autista, diferenciando-se do autismo clássico por não comportar nenhum atraso ou retardamento global no desenvolvimento cognitivo ou da linguagem do indivíduo. Alguns sintomas deste síndrome são: dificuldade de interação social, falta de empatia, interpretação muito literal da linguagem, dificuldade com mudanças, perseveração em comportamentos estereotipados. No entanto, isso pode ser conciliado com um desenvolvimento cognitivo normal ou alto.

O Síndrome de Tourette, talvez o mais estranho dos catalogados, é uma doença que provoca tiques e obriga a dizer palavrões.

Os portadores do Síndrome de Savant são um mistério que fascina e intriga a ciência. Donos de uma memória extraordinária, são capazes de decorar livros inteiros depois de uma única leitura ou tocar uma música na perfeição após a primeira audição. Possuem ao mesmo tempo sérios défices de desenvolvimento, como uma grande dificuldade para falar e se relacionar socialmente. O mais famoso savant do mundo, o americano Kim Peek, que inspirou o director Barry Levinson a fazer o filme Rain Man, aprendeu a ler aos dois anos de idade e, hoje, já adulto, sabe de cor mais de 7.500 livros.

São muitos os síndromes e com certeza não conseguiria enumerá-los na totalidade, quer por desconhecimento dos mesmos, quer por falta de tempo ou de interesse textual. Acho, no entanto, uma injustiça que a possibilidade de conferir epítetos a certos tipos de comportamentos, identificáveis como síndromes, seja apanágio das doutas inteligências, homens da ciência que os identificaram, ou dos lugares onde esses mesmos comportamentos tiveram lugar. Estivado por um espírito criativo, amante confesso dos neologismos, dos barroquismos, e dos lupanares da linguagem, decidi apelidar um comportamento estereotipado, comum entre certos amantes, que confundem relacionamento com posse, amor com fusão e paixão com delírio de ciume, de 'Síndrome do Corno Retroativo'.

O Síndrome do Corno Retroativo, catalogado por mim, como mais uma qualquer doença do foro patológico, caracteriza-se por um ciume intenso, a raiar o absurdo, por quaisquer tipo de relações amorosas havidas com a pessoa com a qual se tem uma relação presente. Essa postura ridícula, excessiva e obsessiva, é capaz de corroer rapidamente relações e fomentar intolerâncias. Parece, no entanto, que certo tipo de pessoas estão condenadas ao ciúme e que a história da sua vida se desenrola na permanente superação desse sentimento que as visita com uma regularidade mais do que desejável. Essas mentes doentias, sofrem por serem ciumentas, porque têm medo que esse sentimento fira o outro, e porque sabem que se deixam submeter a uma imensa banalidade e prova da sua baixa estima.

O doente padecendo do Síndrome do Corno Retroativo, não tolera telefonemas de pessoas que passaram pela vida do seu/sua parceiro, ainda que seja para falar de coisas triviais, mas necessárias, tais como assuntos relacionados com um filho comum. Não tolera ver fotografias de antigos namorados/as, ainda que amarelecidas pelo tempo. Não tolera conversas sobre assuntos amorosos do passado dos seus atuais amantes, e é capaz de abrir cartas que não lhe são dirigidas, rebuscar telemóveis à procura de chamadas recebidas ou efetuadas, ou de eventuais mensagens, persegue e vigia o companheiro, e não lhe admite, sequer, que tenha amigos do sexo oposto.

Temos ciumes sempre por más razões. Ou por medo de perdermos o amor, a consideração ou simplesmente a atenção de alguém; por não sermos suficientemente bons para prender a nós as pessoas. Este ciúme auto-infligido pelos que padecem do Síndrome do Corno Retroativo, assenta sempre numa insegurança básica, numa angústia de quem sente sobre si o desabar do mundo, só de pensar que o 'objeto' do seu amor já foi possuído por outrem. O doente sente-se um corno eterno e irremediável e não encontra forma de se ver livre das 'hastes' que tanto o perturbam. A bem dizer, não há nada que o convença, nem que consiga entrar dentro dos seus neurónios, de que os 'outros' fazem parte do passado e que inevitavelmente todos nós temos uma história de vida, que não podemos nem devemos renegar. A criatura padecendo desta patologia até sofre com a não virgindade do seu parceiro/a e destrói tudo com delírios insuportáveis.

Ainda que nos faça cair o queixo de espanto, é certo que há por aí muitos gentios a sofrer do Síndrome do Corno Retroativo, ávidos por infernizar quem ingenuamente se lhes submete. E se num primeiro momento, o seu ciume expresso e reivindicativo, até que parece valorizar o outro, até lhe concede um estatuto de desejabilidade intensa e impensada que sabe bem, rapidamente se percebe que esse outro não conta muito, não é amado mas possuído, não tem espaço de afirmação próprio, mas antes se usa para expelir angústias que não lhe dizem respeito. Por estas e por outras, há muito que aprendi a detetar pessoas portadoras desta patologia e a melhor forma de as evitar, mas ninguém, onde eu me incluo, está livre de errar de novo. E por vezes o que apetece é mesmo uma postura trivial de não compromisso, capaz de evitar encontros de terceiro grau com portadores deste síndrome.

O ciume e a possessividade são ingredientes, se em quantidades aceitáveis, inerentes a qualquer relação amorosa, mas quando a patologia se instala, é o inferno que entra na vida de cada um de nós.

Todos certamente já provocámos e sofremos por ciume, desconfiança injustificada e irracional, mas temos de fazer um esforço por não descambar na patologia. Afinal, sofrer às mãos de uma pessoa povoada por esse tipo de patologia, é um pouco como deixar o inferno tomar conta da nossa vida e abdicar daquilo que mais nos integra: a nossa liberdade e auto-estima.*

* escrito em 2008 e publicado em blogues e num pasquim.

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