quinta-feira, 1 de junho de 2017

Corte e Cose





«Corte e Cose» é uma das muitas firmas dos franchisings que por aí abundam e integram-se no nosso quotidiano como a visão habituada de mais um nome sugestivo.

As novas formas de intervenção, emergentes dos atuais modos de fazer negócios, habituaram-nos à ideia da firma-conceito, e da força que dele se desprende, como sendo, talvez, uma das melhores formas de publicitação existentes: algo que fica a soar bem no ouvido e na mente de todos nós.

«Corte e Cose», sugere-me a ideia de uma reparação ou, pelo menos, de uma intervenção com resultados positivos – algo que carece ser intervencionado e cujo efeito final resulta num valor acrescentado, e numa melhoria evidente sobre a matéria inicial apresentada.

Escolhi este nome pela sugestão que ele provocou em mim em face ao assunto de que me proponho falar.

Mas não é sobre o franchising que quero dissertar, nem tão pouco sobre as suas técnicas e sucessos comprovados no mundo empresarial moderno. Tomei de empréstimo a firma com outros propósitos.

Pareceu-me que, distorcendo um pouco o nome, poderia obter um epíteto muito aplicável às relações que se estabelecem através da Internet – a novíssima forma de comunicação do nosso tempo, que põe em contacto estranhos que, de outro modo, e segundo todas as probabilidades, nunca teriam qualquer chance de chegar ao conhecimento mútuo.

Numa sociedade impregnada de valores que obtêm sustento na riqueza material obtida, na ostentação e nas relações de subordinação - onde, preferencialmente, devemos ser o subordinador e não o subordinado – no seio da pirâmide social, o tempo para os afetos é risível e tem uma margem escassa para existir.

Longe vão os tempos em que a sociabilidade era coisa fácil, as pessoas travavam conhecimento por força das circunstâncias, numa forma de viver comezinha e doce, que, em leveza, nos guiava e nos fazia felizes.


Hoje, nesta era de ferocidade e heroísmo ao contrário – «tempus fugit» – «perder tempo» com relacionamentos que não tenham por fim, ainda que mediato, um proveito qualquer a nível ascensional-material, é, na mente de muita gente, um empreendimento de todo impensável. Alguns, certamente por infelicidade de expressão, chamam a isto «adaptação».

[Talvez seja eu quem esteja desadaptado, e que nunca tenha conseguido moldar-me com firmeza a esta fabriqueta de viver, dentro da qual me resta existir, e pouco ou nada possa mudar a não ser escrever, até que a impaciência resultante deste estado de coisas me tolde a mente por completo e ganhe o sibilar do meu silêncio.]

O novo meio de comunicação possibilitou aquilo que a voragem dos tempos modernos consumiu: a reaproximação entre as pessoas, o recuperar dos diálogos, a permuta de afetos, a preocupação com as trivialidades do quotidiano dos outros, a exposição das alegrias e das tristezas; enfim, o modo relacional normal entre seres humanos, embutido dos ingredientes de que se lhes reconhece a marca. Tudo isto se as relações entre as pessoas saírem da luminosidade branca do ecrã e se consumarem presencialmente.

Virá o dia em que alguém – se é que já não o tenha feito – escreverá com profundidade sobre este assunto, de uma forma relacional, cientifica, sistemática e desapaixonada, pois restam-me poucas dúvidas que a Internet, se bem utilizada, é o potencial de comunicação mais fabuloso que alguma vez o homem logrou conceber.

A técnica, infelizmente, não molda o comportamento humano, nem possui a magia suficiente para o transformar em algo diferente.

«Corte e Cose», o nome do conhecido franchising, que batiza muitas lojas de arranjos rápidos em superfícies comerciais, aplicado às relações humanas que se formam no universo «on line», sofre uma alteração inevitável. Melhor será chamar-lhe «Cose e Rasga».

São conhecimentos que se travam de modo fortuito, aleatório, e que crescem à velocidade da curiosidade e da empatia que floresce, mas que, o mais das vezes, estão condenados à duração do curso cintilante de uma estrela cadente no astral infinito de uma noite de Verão. E estes lampejos de contato, que alimentam os passatempos de gente fútil e néscia, escondida por detrás das máscaras da cobardia e do anonimato, causam-me um desgosto profundo.

Talvez eu exista forrado de uma ingenuidade de filigrana, muito próxima do infantilismo, mas ainda prezo os relacionamentos que escolho para alicerçar, e deposito neles a esperança e a vontade de fazê-los crescer como fonte geradora de felicidade, aprendizagem e crescimento pessoal.

Exasperam-me os modernos partidários do «Cose e Rasga», que utilizam a «comunicação netiana» à laia de passatempo ligeiro, para preenchimento do vácuo crónico da sua sórdida existência.

Apelo ao fim deste ciclo infernal, este fogo-fátuo de afetos, que consiste no fingimento consciente do encetar de relações que, à partida, sabe-se que durarão até à quebra do encanto e da novidade, e dissolvem-se fáceis, como um bocejo, na hora da despedida.

Já nos bastam a desumanização trazida pelo nosso quotidiano grupal, e não vale a pena cair no ciclo infernal que é iniciar uma construção com materiais sem consistência e, passados alguns momentos, longe que vai a novidade, fazê-la ruir e repetir o procedimento numa voragem próxima da insanidade.

É este hoje o meu desabafo, trazido pelo desalento: «Corta e Cose», de preferência com reforço nas costuras, pois que as relações de amizade valem oiro!

(escrito algures em 2006)

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