terça-feira, 25 de outubro de 2022

Leiria a nova Torre de Babel

Na parte da manhã, aproveitando uma pausa nas hostilidades decretadas pela tempestade Beatrice, que chegou com tormentas e ventos uivantes, fui ao centro da cidade fazer algumas diligências corriqueiras. Deixei o automóvel a cerca de mil metros de distância da Baixa e dei corda aos sapatos. Sempre que posso, mexo-me e, não sei se de tanto exercício físico, se alguma maleita me assola, estou magro como um cão escanzelado. Levava comigo um guarda-chuva gigantesco, farrusco como o meu Lionel, sob o qual podem abrigar-se três pessoas com o meu porte; e, às costas, uma mochila azul, a minha novíssima aquisição, que ainda destila o odor característico da loja do chinês: um cheiro intenso e impregnado a naftalina misturado com perfumes indizíveis, mas igualmente desagradáveis.

Leiria regurgitava gente, tal a quantidade de pessoas que deambulava pelas ruas. Desde que aqui moro, a cidade transformou-se. Em 2006, quando vim para cá residir, ainda era uma urbe tranquila, com pouco trânsito e muito menos pessoas. De urbe de médio porte e com acentuados traços provincianos, a cidade do Lis tem paulatinamente vindo a transformar-se numa espécie de Torre de Babel. Excluindo as repartições públicas, os Bancos e alguns sectores específicos do comércio, na maioria das atividades, é raro não sermos atendidos por um cidadão ou cidadã brasileiro. Li algures num jornal da região que chega uma média semanal de trezentos brasileiros ao distrito de Leiria.

A Lei dos Estrangeiros foi recentemente mudada e a vida foi facilitada para os nossos irmãos que cruzam o Atlântico rumo a Portugal à procura de dias melhores. Desde que sejam pessoas do Bem, venham para trabalhar e construir um futuro melhor para si e para as suas famílias, na parte que me toca, são bem-vindos. Quem vivendo num país como o Brasil, pleno de corrupção, desigualdade social extrema e insegurança, não almejaria de ter uma vida melhor? Esta mescla cultural que junta brasileiros, venezuelanos, ucranianos, paquistaneses, indianos, chineses, timorenses e europeus de todos os países que compõe o mosaico da União Europeia, é um acrescento cultural imenso que é ofertado ao nosso país. As contribuições para a Segurança Social aumentam, o deficit crónico de mão-de-obra é colmatado e sustido o envelhecimento acentuado da nossa população, uma vez que, na sua maioria, os imigrantes que escolhem a pátria de Camões para morar são jovens. O fator negativo, a contra face que existe em todas as situações, é uma eventual imigração de pessoas indesejáveis, tais como criminosos e parasitas sociais, daí ser necessária uma politica de imigração responsável e atenta. O contrário disso é, não tenhamos dúvidas, o principio do fim do modelo societário a que estamos habituados e em que gostamos de viver.

Comecei por tomar um café num dos estabelecimentos mais conhecidos da cidade e fui atendido por uma simpática brasileira, morena e bonitinha, que, após pagar a despesa, me desejou um resto de dia feliz. Revigorado pela amabilidade da menina, subi um piso e fui ao sapateiro. Emagreci de tal forma que tive de fazer mais um furo no cinto e precisava comprar uma argola de cabedal da mesma cor. Adivinhem a nacionalidade do sapateiro? Sim, brasileiro, isso mesmo! O bate-sola, expedito e falador, como culturalmente são a maioria dos brasileiros, resolveu na hora o meu problema e já não ando com o cinto a baloiçar no ar como uma cobra tonta. Vi-me e desejei-me para recordar o que ainda faltava fazer. Enquanto fazia um reset à minha memória, entrei no Pingo Doce mais próximo para comprar alguma mercearia em falta e a menina da caixa registadora que me atendeu também era brasileira. Entretanto, à saída, fazendo a limpeza do espaço exterior, deparei-me com uma senhora, provavelmente ucraniana, a julgar pelo loiro do cabelo, os olhos azuis intensos e um indisfarçável ar eslavo, No interior do supermercado havia mais brasileiros do que portugueses. Os portugueses de gema começam a rarear pela cidade e, provavelmente, muitos deles estão em vias de emigrar para a Suíça ou outro país que lhes ofereça melhores condições de vida. A nós, emigrantes, sucede exatamente a mesma coisa que aos imigrantes que escolhem o nosso país para viverem. Muito provavelmente, a grande maioria, alinha na base da pirâmide social com a agravante que, não sendo europeus, aguardam vez no SEF para fazer uma manifestação de interesse para obter um título de residência.

A hora do almoço aproximou-se e dei uma espreitadela no telemóvel para ver se havia novidades dignas da minha atenção. A proteção do vidro estalada entristeceu-me pela inestética, mas, ao mesmo tempo, fez-me lembrar que se não fosse eu ter protegido o aparelho com essa película miraculosa, já teria gasto mais de cem euros num vidro novo. Decidido a resolver essa situação e conformado com a inevitabilidade de que, quando andamos pela rua, encontramos sempre forma de gastar mais alguns euros, entrei na loja de um paquistanês que vende e repara telemóveis. O empregado, um jovem de tez escura e olhos largos e negros, confirmou-me que o vidro não sofrera nenhum dano e tratava-se somente de substituir a película protetora e. por seu conselho, complementar com uma capa mais dura e resistente. Terminado o serviço perguntei-lhe se tinha multibanco, pois eu não estava prevenido com a quantia suficiente para pagar. Respondeu que não, mas que existia uma ATM em frente e, caso não tivesse dinheiro, só voltando ao Pingo Doce. Disse-me que eu podia levar o telemóvel comigo.

Constatei que não havia mesmo dinheiro na ATM mais perto e voltei à loja para informar o senhor que teria mesmo de voltar ao Pingo Doce para levantar dinheiro. E assim fui e de novo regressei à Fixmobile para pagar a despesa. Descarado como sou e falador nato como os brasileiros, não resisti entabular conversa com o senhor paquistanês. Quis saber alguma coisa sobre a forma como veio para Portugal e o que achou do acolhimento no país. Fiquei a saber que se chama Naim, tem quarenta anos, chegou a Portugal em dois mil e doze e teve ajuda de muitas pessoas, portugueses santos, pois viveu anos de grande carestia. Tudo lhe deram: comida, roupa, conforto e dinheiro. Disse-me que cerca de setenta por cento dos portugueses são boas pessoas e não são racistas, mas já foi muitas vezes vitima de alguma espécie de segregação em virtude das suas deficiências na língua, origem e cor da pele. Naim disse-me também que hoje felizmente tem uma casa e um negócio próspero, embora já tenha sido diversas vezes roubado. Apesar de tudo continua a acreditar na natureza boa do homem e acha que o mal é uma doença e uma exceção. Finalmente, perguntei-lhe - não consegui resistir : - porque é que tinha confiado que eu voltava para lhe pagar o dinheiro e não quis ficar com o meu telemóvel? ele respondeu-me: - por causa do seu olhar. Fiquei perplexo. Então, nos casos em que foram ao multibanco e não regressaram para pagar ele não adivinhou isso pelo olhar, perguntei? Ele deu-me uma resposta que me deixou intrigado. Disse-me que, sim, tinha julgado que não voltavam, por causa do olhar, mas ainda assim deixou-os ir.









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