segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Pão-por-Deus



Acabei de ler a informação algures num sitio da Internet que Pão-por-Deus é um peditório ritual feito por ocasião do Dia de Todos-os-Santos, associado às práticas relacionadas com as refeições cerimoniais do culto dos mortos "Dia dos Finados".

Em Portugal no dia 1 de Novembro, Dia de Todos-os-Santos, as crianças saem à rua e juntam-se em pequenos bandos para pedir o Pão-por-Deus (ou o bolinho) de porta em porta. Apesar de não ser uma tradição circunscrita a uma região e existir em diversas partes do país, antes de vir morar para Leiria, nunca eu me recordo de alguma vez, em Lisboa ou nas cidades circundantes, ter presenciado o peditório do bolinho.

Na minha meninice era usual os pobres tocarem à campainha das pessoas, quase sempre à hora do jantar, para pedir comida. Era rara a noite em que a minha mãe não dava um prato de sopa e fruta a alguém, na condição de comerem sentados nos degraus da escada. Por questões de segurança, mas também por segregação, muito comum nessa época, ela não os deixava entrar.

Vista a situação à luz dos cânones atuais parece inadmissível dar uma esmola de forma tão humilhante, mas estávamos nos anos 60, a miséria era endémica e em qualquer cidade do país existiam ilhas de pobreza extrema, muito idênticas às favelas que conhecemos da América do Sul. Na minha escola, muitos meninos andavam descalços e quando lhes ofereciam uns sapatos, não raro, vendiam-nos, pois já tinham uns calos tão grosso nos pés que se sentiam desconfortáveis com qualquer calçado.

Na minha infância, a pobreza extrema era tão comum que já pouco afligia. Quem vivia bem ou remediadamente, mais não fosse para aplacar a sua má consciência ou remorso, partilhava as suas migalhas e sobras, sempre que um pobre lhe pedia comida. "Dinheiro para a bebida não dou, mas um prato de sopa sempre se arranja..." . Os pedintes eram quase todos rotulados de alcoólatras, potenciais larápios e irresponsáveis e só pediam para sustentar vícios. Não raro, os paupérrimos apanhavam das mesas do cafés, inclusive do chão, os restos dos bolos deixados por um cliente enfartado de tanto comer. Eram desapiedadamente expulsos de restaurantes, cafés ou quaisquer estabelecimentos comerciais, pois vestiam-se com farrapos, destilavam um odor insuportável e a sua pele era uma negritude, tanta a sujidade acumulada.

Voltei a ver miséria ao vivo e com dimensões épicas nas quatro vezes em que estive no Brasil. Certas zonas do Rio de Janeiro fizeram-me recuar ao Portugal dos anos 60, com os seus famosos "bairros da lata" que eu visitava com o meu pai, nesse tempo, Presidente da Conferência de São Vicente de Paulo e um acérrimo praticante da esmola e do apadrinhamento de um pobrezinho. Nos anos 60, no seio da Igreja Católica, era muito comum o "bom cristão" ter o seu próprio pobrezinho, a quem levava comida, roupa, marcava consultas no médico e ofertava conforto espiritual.

Era uma caridade que consentia e via como uma inevitabilidade a diferença extrema das condições de vida entre filhos de um mesmo criador. O nascimento na maior parte das vezes ditava o destino de cada um. Mas uma coisa é certa: se não fosse a Igreja, Católica ou Protestante e as suas organizações de benfeitoria, o Estado fascista teria deixado morrer à fome e na mais miserável condição de vida muitos milhares dos seus concidadãos. Felizmente que o peditório do bolinho é um ritual que mantém viva uma vetusta tradição e não mais do que isso.



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