quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Já fiz tudo isso



Já me queimei a brincar com uma vela; já fiz um balão com uma pastilha que se me colou na cara toda; já falei com o espelho; já fingi ser bruxo, mago, fazedor de feitiçarias medonhas. Já quis ser piloto, escritor, poeta, fotojornalista, magistrado, vendedor de combustíveis, pescador, taxista, professor. Já me escondi atrás de uma cortina e deixei esquecidos os pés de fora; já estive sob o chuveiro até fazer chichi. Já roubei um beijo, confundi os sentimentos, tomei muitos caminhos errados e continuo a gostar de trilhar o desconhecido, ainda que o mesmo me conduza ao cadafalso. Já raspei o fundo da panela onde se cozinhou o creme; já me cortei ao aparar a barba muito apressado e chorei ao escutar determinadas músicas no sossego da minha sala. Já tentei esquecer algumas pessoas e descobri que são as mais difíceis de esquecer. Já subi às escondidas até ao terraço para agarrar estrelas; já subi a várias árvores para roubar fruta; já caí mais de uma vez de uma escada. Já fiz juramentos eternos que não cumpri, escrevi no muro da escola e chorei sozinho na casa-de-banho por algo que me aconteceu. Já fugi de casa para sempre e voltei no instante seguinte [até que um dia não voltei mais].

Já corri para não deixar alguém a chorar; já fiquei só no meio de mil pessoas sentindo a falta de uma única. Já vi o pôr-do-sol mudar do rosado ao alaranjado; já mergulhei para a piscina e não quis sair mais; já bebi até sentir os lábios dormentes; já olhei a cidade de cima e nem mesmo assim encontrei o meu lugar. Já senti medo da escuridão; já tremi de nervos; já quase morri de amor e renasci novamente para ver o sorriso de alguém especial; já acordei a meio da noite e senti medo de me levantar.

Já apostei a correr descalço pela rua, gritei de felicidade, roubei rosas num enorme jardim; já me apaixonei e pensei que era para sempre, mas era um "para sempre" pela metade; já me deitei na relva até de madrugada e vi o sol substituir a lua; já chorei por ver amigos partir e depois descobri que chegaram outros novos e que a vida é um ir e vir permanente.

Foram tantas as coisas que fiz, tantos os momentos fotografados pela lente da emoção e guardados neste baú chamado coração que nem sei que mais o que por ora dizer…

Leiria, 2007

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