quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Véspera

Como quase todos os seres humanos, detesto secas, longas esperas, espaços ultra congestionados, encontrões, excesso de ruído, embora reconheça que o deserto é bom para os santos. O deserto é a paisagem espiritual por excelência e a que mais se aproxima das formas puras. Só se lhe comparam o mar sem fim e o nevoeiro cerrado, que apresentam a mesma ausência de pormenor, uma matéria quase lisa em que não proliferam os elementos díspares.

Um aeroporto internacional, em período de vésperas de Natal, é tudo menos um lugar calmo. Não sei se fruto da idade, das grandes agitações que já passaram pela minha vida, cada vez mais aprecio degustar o sossego, a calma de uma sala onde apenas se ouve o tique-taque monocórdico de um relógio de parede ou Puccini em tons suaves. É nesta ambiência que gosto de escrever, ler, e meditar, que são das coisas que maior prazer me dão na vida e com as quais sempre me sentirei identificado.

É nos dias que antecedem uma grande viagem que imagino o sempiterno stress que me aguarda. Antevejo o Aeroporto da Portela, manhã cedo, com as costumeiras filas para despachar as bagagens; passageiros em trânsito, oriundos de todos os lugares do mundo, dormitando nos bancos; outros desembrulhando comidas; crianças tomadas pelo choro de um despertar matinal forçado; um vaivém de pessoas carregando malas e sacos aglomerando-se junto aos terminais dos controlos de embarque; as cafetarias, que cobram o coiro e o cabelo por um fanico de sandwiche, atulhadas com os habitantes sazonais desta enorme Babel aeroportuária.

Sensivelmente dez horas depois do enorme Airbus A 340 da Tap deixar a Portela, depois do ruído omnipresente dos quatro reactores ter-se transportado para a minha cabeça, começo a vislumbrar os montes em forma de Curva de Gauss que circundam a gigantesca Cidade Maravilhosa. O pássaro volta-se, primeiro para a direita, depois para a esquerda, e consigo vislumbrar a megalópolis plena de contrastes, onde prédios que pretendem arranhar os céus vivem paredes meias com favelas que ocupam tudo o que é morro. Em contrapartida, sei que assim que o avião pousar, volto a conviver com gente em tudo diferente do povo triste e macilento que deixo para trás e do ar cinzento e gélido do Inverno de Portugal. No hemisfério sul, o Estio está prestes a nascer e eu sou um convidado especial para assistir ao parto do Verão tropical. Levo comigo um bloco para notas e a "Caneta do Escritor das Frases Curtas", uma esferográfica que apresenta uma luzinha no topo, para escrever no escuro; mas só frases curtas, porque não ilumina mais do que três palavras compridas de cada vez. 

2007



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