sábado, 15 de julho de 2017

A rapariga do lenço à pirata


Já há muita gente na sala e ainda há pouco a manhã começou. Tira uma senha e diz bom dia ao rapaz que está atrás do balcão. É um moço bem-parecido, bastante novo, tem dois piercings, um no nariz, outro na sobrancelha esquerda. É um funcionário diligente, simpático e muito educado.

Ele recorda que, quando era jovem e saudável, também ele era belo. As pessoas olhavam-no na rua e as raparigas, quando seguiam em grupo, viravam a cabeça para trás e davam risadinhas. Ele corava e seguia o seu caminho, lesto, com os olhos ainda mais firmes no chão.

Senta-se numa cadeira vaga, com a senha número setenta na mão e dispõe-se a aguardar a chamada. Pela primeira vez olha com mais atenção em seu redor. A numeração ainda vai nos cinquenta e pouco mas as funcionárias das análises trabalham rápido a extrair a seiva vital. O numerador eletrónico avança com rapidez, à razão de um número por cada três minutos. Ele cronometra o tempo e tenta calcular quanto falta até chegar à sua vez.

Aflige-se com o cenário que o rodeia. Há tanta gente doente! Será que os que estão neste momento lá fora, longe deste ambiente insano, os que ainda trabalham, sorriem despreocupadamente, divertem-se, amam, conduzem a velocidades estonteantes e espreguiçam nas esplanadas da cidade, pensam que vão ficar eternamente sãos, como se fossem deuses? Saberão eles que as coisas não são assim? Que a sombra da morte surge sempre algures numa curva da vida?

Não param de entrar mais pessoas no espaço cada vez mais atulhado. Os funcionários continuam simpáticos, calmos e diligentes para com os pacientes, como se estivessem a atender clientes numa loja comercial. Ele fica contente por ver que, afinal, as mentalidades sempre mudam; que os jovens trazem uma mais-valia aos serviços públicos, devido à sua maior instrução e diferente postura.

Quer relatar o que está a acontecer diante dos seus olhos, ele que é um vulgar utente de um hospital. Aqui não há doutores nem engenheiros, ricos ou pobres: são todos doentes e carecem de tratamento.

Sofrimento é: olhar para o canto da sala e ver uma rapariga – não terá mais de vinte e poucos anos – magricela, a pele como um pergaminho, num rosto de olheiras cavas, como duas fundas negras, expandindo um olhar tristonho, vago, como se fora uma lâmpada apagada.

Acompanham-na os pais. Ampara-se no ombro da mãe. Andar é um custo. Tudo é um custo. O pai carrega, dentro de envelopes acastanhados enormes, os cardápios dos exames, das radiografias, dos tacs, das ressonâncias magnéticas – ele receia que tudo não seja senão um périplo de notas negativas, más notícias, chumbos nas disciplinas vitais à continuação da saúde, da vida, daquela rapariga tão jovem. A rapariga aparenta um estado irremediável.

Ele quer, sobretudo, evadir-se desta visão que o obriga a pensar. O lenço às flores. O lenço que ela usa na cabeça, enrolado à moda dos antigos piratas que dantes povoavam o mar das Caraíbas. Um lenço posto de modo tão simples. Um símbolo. O símbolo da quimioterapia.

As coisas de que ele mais gosta são, não necessariamente por esta ordem: os livros; a escrita; as artes; as flores; o campo; o mar; os rios e toda a água corrente; a fruta deliciosa que cai madura das árvores; a brisa que sopra suave no final da tarde; as horas na relva a ver o céu, sonhando; amar e ser amado. Gosta de beijar e ser beijado. Disso gosta muito.

É fácil desviar o olhar. Fixá-lo no branco das paredes, abrir o livro fininho que sempre transporta na mão. Dar uma mirada no final da novela que a televisão encrustada na parede transmite àquela hora matinal, olhar repetidamente os ponteiros do relógio, mexer no teclado do telemóvel, como se fosse um tique e apagar mensagens e chamadas perdidas que já nada significam. Apagar alguém, desse modo, seria fácil. A morte, afinal, mais não é do que uma súbita falha de luz, de energia.

Fecha os olhos. Sempre detestou agulhas. Sente a picada. Dói. O que é a dor? A dor é subjetiva e ninguém a sente do mesmo modo. Ao seu lado há mais lenços de pirata. Alguns doentes não têm sobrancelhas, nem luz, nem gordura, nem consistência, nem esperança.

A vida é esperança. Viver implica (ter) esperança.

Lá fora está frio. Muito frio. O sol brilha ténue no meio do dia azuláceo. Apetecem sempre dias assim. Sente-se vivo. É por ora tudo quanto lhe importa.

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