Curiosidade é o que move o ser humano a querer saber um pouco a mais do que ele já sabe. Somos quase todos curiosos e isso dá um enorme jeito em termos de sobrevivência. Desde pequeninos usamos o que isso tem de inato para conhecermos melhor o mundo que nos rodeia, para aprendermos os sinais de perigo e os de gratificação e também para chamarmos a atenção das pessoas e estabelecermos relações. São sempre os mais curiosos que se interessam por mais e diferentes coisas, que exploram e levam por diante empreitadas e obras que passam ao lado dos que, permanentemente, consideram que o que acontece à sua volta não lhes diz respeito. É bom ser curioso. Mas se uma parte substancial da nossa curiosidade nos ajuda a crescer e nos serve no sentido de sermos mais e melhor, uma outra parece supérflua e até mesquinha. Prende-se a detalhes insignificantes, toma a parte pelo todo e, a partir daí, galopa na construção de histórias improváveis e maledicentes. É essa parte da nossa curiosidade que nos faz calar para escutar a conversa da mesa ao lado entre pessoas que nunca vimos, que nos faz abrandar, quase parar, para ver se do tal acidente resultaram vítimas mortais. Interessamo-nos, disfarçadamente, por aspectos que, juramos a pés juntos, não têm interesse nenhum. Seremos voyeurs? Cuscas? Criaturas infelizes com vidas demasiado triviais para nos comportarmos desta forma horrenda? Frequentemente polarizamos a vida e os acontecimentos em duas categorias simplistas e reducionistas: de um lado os contentinhos bem cheirosos a quem só acontecem coisas boas e, do outro, os desgraçados da sorte enredados em tragédias e cenas tristes. O que é certo é nunca nos contentamos com as partes triviais e desapaixonadas das informações que nos chegam às mãos. Precisamos sempre de apimentar a verdade com algo fascinante e indecoroso; e fazemo-lo, dizemos nós, por mera curiosidade.
quinta-feira, 20 de dezembro de 2018
Viajar de avião há 57 anos
Há 57 anos atrás, viajar de avião tinha requintes que nem nas classe mais caras de hoje existe. O meio aéreo banalizou-se, o espaço entre os assentos foi gradualmente diminuindo e a simpatia das hospedeiras e dos comissários de bordo remeteu-se a meros esgares profissionais. Surgiu uma nova doença associada aos menos abastados que viajam de avião: O Síndrome da Classe Económica.
O Síndrome da Classe Económica, assim chamado devido à sua associação com viagens prolongadas em espaço confinado, como é o caso da classe económica ou turística nos aviões, consiste no aparecimento de trombose venosa profunda durante ou pouco tempo após uma viagem prolongada.
Aconselha-se aos useiros e vezeiros do low cost (como é o meu caso), que tenham de andar de avião em viagens transcontinentais, evitar uma imobilidade prolongada. Se possível, estando o corredor desimpedido, façam jogging entre os momentos em que servem as refeições.
Saltar por cima das hospedeiras pode ser uma boa opção, ou mesmo jogar ao eixo.
Swissair first class 1961 (DC8), no tempo em que voar era um verdadeiro luxo
quarta-feira, 12 de dezembro de 2018
Atomic Rooster na Piedade
Os Atomic Rooster, uma banda de rock progressivo britânica, cujo primeiro baterista tinha sido Carl Palmer, à data já membro do prodigioso trio, Emerson, Lake & Palmer, atuaram em 1973 na Cova da Piedade. Foi a primeira banda de rock estrangeira a cujo concerto assisti ( os Black Sabbath e os Procol Harum estiveram em Cascais no mesmo ano e o Elton John em Vilar de Mouros ).
Antes do 25 de Abril, os concertos pop/rock, aqui no jardim à beira mar plantado, eram escassos e cada vez que uma banda estrangeira atuava, a juventude endoidecia por completo e os bilhetes esgotavam muitos meses antes do evento.
Em 1973, tinha eu apenas 12 anos de idade, na noite em que teve lugar o concerto, juntamente com alguns amigos, conseguimos ludibriar o porteiro e entrámos à borla no salão de festas da SFUAP (Sociedade Filarmónica União Artística Piedense).
Foi o meu primeiro contacto com: guedelhudos com tiras de pano na cabeça a segurar o cabelo; barbudos com os pulsos decorados com pulseiras de missangas; umbigos à mostra; calças à boca-de-sino; maxi casacos de ganga; saltos altos; bornais militares a tiracolo; óculos coloridos à John Lennon, tudo mesclado com o forte odor de uma substância que pairava no ar, mas que à data não conseguia identificar.
Fiquei junto ao palco a admirar os músicos, estarrecido com o som estridente das guitarras, com os fumos de palco e os jogos de luzes, sempre com um olho na entrada, não fosse um dos porteiros descobrir um puto no meio daqueles hippies fim de estação da Cova da Piedade.
sexta-feira, 7 de dezembro de 2018
Tolan o encalhado
Nos princípios de 1980, eu morava e trabalhava em Lisboa e estudava à noite na Universidade, mas utilizava com alguma regularidade os cacilheiros, uma vez que nunca me desprendi da cidade de Almada. Numa manhã de nevoeiro do mês de fevereiro, que bem recordo, o porta contentores Tollan, de bandeira britânica, chocou, em pleno estuário do Tejo, com um navio sueco, arrastando para a morte 4 dos seus 16 tripulantes.
Seguiram-se uma longa saga de tentativas frustradas de remover o navio e durante quase quatro anos, o Tollan permaneceu encalhado em frente à principal praça lisboeta e entrou no anedotário nacional.
Chegou-se ao desplante de se publicarem mapas turísticos da cidade de Lisboa com a representação do Tejo e do navio encalhado.
O nome Tollan, na sua versão aportuguesada, Tolan, deu nomes a cafés, restaurantes e a bares de diversão noturna lisboetas e entrou no léxico como sinónimo de "encalhado".
Os jantares de solteiros passaram, por exemplo, a designar-se como "jantares tollan", já que coloquialmente "estar encalhado" era um termo que se aplicava àquelas pessoas que permaneciam no estado de solteiro, fosse por vontade própria ou por um qualquer infortúnio.
Com a remoção do navio das águas do Tejo e o aparecimento de novas gerações desconhecedoras deste episódio, o termo Tolan, com a significação que à data tomou, caiu em desuso.
Voltámos ao useiro e vezeiro termo "encalhado", para designarmos de forma torpe as pessoas que estagnaram no celibato.
Em 1963, tinha eu dois anos de idade, um violento incêndio destruiu, na sua quase totalidade, a última nau portuguesa da chamada "Carreira da Índia", a fragata D. Fernando II e Glória, mantida ao serviço da Marinha Portuguesa entre 1845 e 1878.
A fragata encontrava-se fundeada em pleno estuário do Tejo, no Mar da Palha, pois servia então de sede à Obra Social Fragata D. Fernando, uma instituição destinada ao acolhimento de rapazes oriundos de famílias de parcos recursos económicos e que ali recebiam instrução escolar e treino de marinha.
Já em adulto, durante algum tempo, insisti com o meu falecido pai, dizendo que me recordava de estar ao seu colo, na varanda da casa de Almada, a assistir ao incêndio. Ele dizia que era impossível que eu com dois anos de idade tivesse memórias, mas o detalhe com que descrevi o momento vivido acabou por o convencer. Na verdade, nem ele nem ninguém, me tinha contado que eu assistira ao incêndio ao seu colo e à intervenção dos bombeiros nas águas do Tejo.
Sabe-se que por volta de um ano e meio e três anos, a capacidade intelectual das criança aumenta e vai melhorando a memória aos poucos. Aos quatro anos, segundo a melhor doutrina, as áreas responsáveis pela memória amadurecem e começam a existir lembranças.
O estranho de tudo isto é que dificilmente consigo recordar episódios recentes, mas retive, ainda que em esboço, muitas cenas passadas na minha mais precoce infância.
Após o incêndio, o remanescente da fragata foi rebocado para uma área fluvial com pouca navegabilidade e permaneceu enterrada no lodo durante quase trinta anos. Somente a partir de 1992 foi submetida a um aturado processo de reconstrução, a tempo de ser um dos ex libris da Expo de 1998.
Ambas as histórias comungam um facto que é um naufrágio, mas o encalhamento da nossa fragata, contrariamente ao caso do Tollan, não deu origem um neologismo coloquial, do tipo: "Então, ainda estás D. Fernando e Glória?" - para significar "ainda estás solteiro/a?
Porventura, o cizentismo do regime e a crónica falta de sentido de humor dos bimbos que manipulavam os mecanismos da censura, em tudo o que respeitasse a "brincar com símbolos nacionais", jamais permitiria que alastrasse uma piada de nenhuma conveniência política.
O episódio da fragata D. Fernando II e Glória foi, em alternativa à jocosidade, aproveitado pelo regime para exaltação de um dos símbolos nacionais, a bandeira. Os órgãos de comunicação social da época, veicularam a notícia da história de um bombeiro que, vendo o maior símbolo nacional em risco de ser consumido pelas chamas, com risco da sua própria vida, conseguiu arrear a bandeira e guardá-la em lugar seguro.
O bombeiro foi naturalmente condecorado e, anos mais tarde, confidenciou que tinha sido imerecida a honraria, pois tudo não tinha passado de uma história fabricada.
segunda-feira, 26 de novembro de 2018
Adeus Bernardo
Bernardo Bertolucci, um dos maiores realizadores italianos e do panorama cinematográfico internacional, para alguns, mais famoso pelo inolvidável e polémico filme de 1972, "Último Tango em Paris", com Marlon Brando e Maria Schneider, faleceu hoje aos 77 anos de idade.
Os media deram conta do sucedido sem grande destaque, como se a sua morte não tivesse o mérito suficiente para ser notícia.
Desapareceu hoje um dos maiores diretores cinematográficos de sempre, realizador de filmes como: "O Último Tango em Paris"; "O Conformista"; "O Último Imperador"; "Novecento"; "Um Chá no Deserto", "O Pequeno Buda", só para citar os que me vêm à memória.
Devo-lhe muitas alegrias, porque os seus filmes ajudaram a construir o meu imaginário e tenho a certeza que pairam no forro da minha imaginação.
Ganhador de dois óscares com a película "O Último Imperador", Bertolucci recebeu ainda numerosos prémios e nomeações, atribuídos pelas mais altas instâncias ligadas à sétima arte. Era uma das figuras mais respeitadas no mundo do cinema de autor - descartado o "trash cinema" e a vertente comercial, para gáudio dos simple mind.
A cultura artística sempre foi tratada com desdém (coisa das elites) mas, pior do que isso, é cada vez maior a tendência para incluir nela formas bárbaras e cruéis de diversão, bem como entretenimentos primários e de fraco gosto. Não nos pasmemos se qualquer dia o futebol também for considerado uma arte. Quem sabe, a oitava arte, já que a sétima, felizmente, está tomada e é nossa.
Descanse em paz, Bernardo Bertolucci
sexta-feira, 16 de novembro de 2018
Contra as touradas
Há mais de 2000 anos, morriam, vítimas de formas criativas, nas mãos de gladiadores ou nas garras de animais, toda uma sorte de pessoas. Esses sacrificados podiam ser ladrões, soldados desertores, escravos ou, apenas, cristãos.
Ser condenado à morte, devorado por animais em coliseus, tinha até nome: damnatio ad bestias e ao longo de três séculos, desde a origem do cristianismo até a fé se tornar a religião oficial do império romano, esta prática perdurou.
Hoje, volvidos dois milénios, certos povos, que se afirmam pertencentes ao primeiro mundo civilizacional, para gáudio de uma multidão sádica, que regozija com gritos e incitamentos, tudo sob um pano de fundo musical - a música do suplício e da morte - , praticam a tortura e a morte em animais em arenas de coliseus (as chamadas praças de toiros - decalcadas dos antigos coliseus romanos); e chamam-lhes "espetáculos culturais".
A mutilação genital feminina também é considerada uma tradição em muitos povos e nem por isso não a repudiámos, criminalizámos e julgámos menos bárbara. Perante a tradição e o repúdio visceral pela tortura e morte dos animais, dois direitos em conflito, devemos seguir a regra do Direito mais forte como forma natural de superar a clivagem. Não há dúvidas de que a tourada é uma exceção bizarra a todas as leis e princípios pelos quais nos regemos e pautamos.
Acredito que é uma questão de tempo até que a existência das touradas seja uma mácula vergonhosa que assombrará as gerações presentes e vindouras que, perplexas, se interrogarão: como foi possível eles terem feito isto?!
sexta-feira, 9 de novembro de 2018
terça-feira, 23 de outubro de 2018
O vendedor de "banha da cobra"
Das muitas profissões que desapareceram, motivadas pelo abre olhos que os novos tempos trouxeram à população em geral, a que mais saudades me deixa é a do vendedor da "banha da cobra".
O vendedor da "banha da cobra" não é uma personagem de histórias de ficção, como muitos jovens da atualidade pensam. O vendedor de banha da cobra existiu efetivamente e arrecadava imenso dinheiro pelas terras por onde passava.
Todos sabemos que a banha da cobra não serve para nada, mas a convicção que esse vendedor transmitia, através duma oratória bem estudada e estruturada, convencia muita gente sobre as capacidades infinitas dos milagrosos medicamentos que apregoava.
Sentado na cadeira do tempo, recuo meio século e dou por mim, criança, fascinado no meio de uma multidão, composta sobretudo por donas de casa e reformados, junto ao velho mercado de Almada.
Visualizo, junto ao mercado da vila de Almada (Almada só foi elevada à categoria de cidade em 1973), um homem bem parecido, trajando um fato azul escuro com riscas brancas e uma gravata com cornucópias douradas, grossos anéis de ouro enfiados em vários dedos e doses excessivas de Bill Cream no cabelo. Está em cima de uma cadeira (por vezes, sobre o estrado de uma carrinha) que lhe serve de púlpito improvisado, para melhor despejar a sua oratória. Tem um microfone (nos tempos mais arredados usavam um megafone, o que tornava a cena ainda mais feliniana) tapado por um lenço (artefato importante, pois aparava os perdigotos que iam largando, à medida que se empolgavam no discurso) preso por uma armação que lhe deixa as mãos libertas para melhor gesticular e mostrar os produtos que apregoa.
Alega, com veemência, que o conteúdo das saquetas que tem dentro das várias malas abertas que o ladeiam, tudo curam: impigens, mau-olhado, torcicolos, urticária, febre dos fenos, dentes, nervos, escleroses, artroses, entorses, diarreias, sarampo, escarlatina, depressões, espinhela caída, terçolhos, verrugas, cravos, desmanchos, problemas renais e/ou figadais, entre outros.
A certa altura, num passe de mágica, surgindo do nada, exibe numa das mãos um grande boião de vidro com umas grandes pedras esverdeadas e negras dentro; e, de seguida, outro boião, um pouco maior do que o anterior, com aquilo que parece ser uma pequena cobra esverdeada conservada em formol - como aqueles animais que observámos nas aulas de Ciências da Natureza.
A populaça está extasiada e escutam-se gritos de sentido horror e espanto. O vendedor está ao rubro, pois sente que finalmente tem o povo nas mãos. A manipulação começou a surtir o efeito desejado e o clímax foi atingido.
"Minhas senhoras, meus senhores! Estas pedras foram retiradas do ventre de uma rapariga com 20 aninhos. Ela queixava-se com fortes dores na barriga e nenhum médico lhe conseguia valer. Os pais dela gastaram toda a fortuna que tinham e correram tudo o que era hospitais! Após tomar estas saquetas milagrosas durante uma semana, começou a expelir estas pedras. Depois, como se não bastasse, expeliu finalmente esta cobra, que vocemecês estão a ver, que a estava a comer por dentro! E é este remédio que vos quero oferecer. Não custa nem 20, nem 15, nem 10! Custa apenas cinco escudos, e quem levar dois leva um totalmente de graça. Um para aquele senhor, outro para aquela menina... e enquanto eu vou lá à frente receber o dinheiro, a minha mulher vai lá atrás distribuir as saquetas..."
De repente toda uma multidão acena com uma nota de 20 escudos, tudo para ser gasto em saquetas ( o conteúdo era na maior das vezes farinha moída). Completamente suado, com a face rubra do desgaste e a voz rouca, resta ao vendedor da "banha da cobra" ajudar a sua esposa no espoliamento do incauto povo, disposto a levar quatro saquetas ou mais, para um tratamento mais eficaz.
Tanto quanto se sabe, nunca um vendedor de "banha da cobra" foi alguma vez acusado de lesar a saúde pública e é sabido que pagavam licenças camarárias, para uso dos espaços das feiras, como qualquer outro comerciante.
O conteúdo das saquetas, pelo que sei, era simples farinha moída que, tal como o Melhoral, não fazia nem bem nem mal. Mas o efeito placebo devia funcionar, pois escutei casos, relatados à minha mãe, de pessoas que dizem ter melhorado das suas maleitas depois de fazerem um tratamento completo.
Nunca mais vi nenhum vendedor da "banha da cobra", figura tão usual nos mercados e feiras dos anos 60. O mais parecido que conheço são os pastores das Igrejas Evangélicas que por aí pulsam, com as suas gravatas berrantes, fatos de corte datado, mas com formas muito mais subtis e sofisticadas de comunicação.
A promessa de cura de todas as enfermidades, a vida em esplendor que auguram para todos os que neles acreditem, acontece depois da multidão estar hipnotizada com o seu "dom da palavra", artes manipulatórias de pobres de espírito, cativos na orfandade da sua parca inteligência. É nesse momento de irracionalidade e êxtase, que os crentes se despojam do parco dinheiro que possuem, em troca de uma cura ou de um milagre redentor nas suas vidas.
Os vendedores da "banha da cobra", transmudados noutros personagens que se lhes assemelham, sempre hão-de existir, pois faz parte do roteiro do mundo a sempiterna capacidade manipulatória dos mais fortes sobre os fracos de espírito. E nesta coisa de enganos, a fronteira entre o licito e o não licito é ténue. Não há salvação para quem quiser ser enganado. É deixá-los ir, como dizia o outro...
domingo, 21 de outubro de 2018
O AEC Regent III
O AEC Regent III, fabricado no Reino Unido e usado no transporte público londrino, era o autocarro double deck usado pela Carris em Lisboa, desde os anos 50 até meados da década de 80 do século XX.
A sua cor verde azeitona, o matraquear inconfundível do enorme motor de 9.6 litros e o ruído típico dos travões operados por pressão de ar, tornavam-no inconfundível no trânsito lisboeta.
Ainda gaiato, recordo-me de ter por eles um verdadeiro fascínio, agora num desfiar de memórias:
O teto dos autocarros a roçar as ramadas mais baixas das árvores da Avenida da Liberdade, provocando, por vezes, a fuga de muita passarada que por lá abundava; a forma como a carroçaria chiava e adornava completamente nas curvas mais apertadas; a cabine do chofer, parecida com uma cápsula, com uma porta individual, onde o condutor se agarrava a um volante primitivo, sem direção assistida, forrado com fita isoladora verde, fazendo esforços enormes para manobrar o gigantismo do veículo; a escada traseira (nalguns modelos era na dianteira) elíptica, onde mal nos segurávamos quando o autocarro fazia uma travagem ou uma curva mais apertada (nunca esperavam que as pessoas estivessem sentadas para arrancar); os bancos de napa castanha; as luzes dianteiras, a grelha frontal e o tampão do radiador (reminiscências dos calhambeques) - o radiador era frequentemente reabastecido com água pelos motoristas, que transportavam na cabine um jerry can e um funil, ambos verde azeitona (a cor era a marca da empresa), pois os veículos aqueciam muito, especialmente no verão.
Cheguei a ver um chofer que se queimou gravemente quando estava a desenroscar o tampão do radiador.
Nessa época, sem direitos, greves ou reivindicações, os chofers levavam uma vida desgastante: conduziam veículos primitivos, desconfortáveis, lentos e pesados, sem ar condicionado, com mudanças manuais, sistemas de travagem arcaicos e suspensões duríssimas, eram obrigados a usar farda, fosse verão ou inverno e faziam muitas vezes de mecânico, já que a manutenção e as reparações simples ficavam por sua conta.
Delicioso é, hoje, recordar-me criança, numa época que dista 50 anos do mundo atual e trazer à colação algumas sinestesias que então forravam o meu imaginário. Nesses tempos a vida era bastante dura, mas a saciedade era mais facilmente atingida - as pequenas coisas tinham outro sabor, pois sabiam a grandes coisas.
terça-feira, 9 de outubro de 2018
Em memória do Amadeu Ferreira
Hoje, a propósito de nada, lembrei-me do Amadeu Ferreira, de quem fui colega na Faculdade de Direito de Lisboa e dos seus celebérrimos apontamentos baseados nas aulas do Prof. Dr. Rui Pereira (aquele que foi ministro da administração interna, esse mesmo), que eram tão bons a ponto de várias gerações de alunos terem estudado a cadeira por eles. Há casos, inclusive, de alunos que se limitaram a ler a dita sebenta e passaram na disciplina com uma nota nada vergonhosa.
Recordei o Amadeu como o melhor aluno de Direito da minha geração (no 4º ano da licenciatura já era monitor convidado) e que mais tarde se tornou advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Foi também um dos principais responsáveis pela promoção da língua mirandesa e traduziu várias obras importantes da literatura portuguesa para o mirandês. Era presidente da Associação de Língua e Cultura Mirandesas (ALCM), presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes, vice-presidente da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), membro do Conselho Geral do Instituto Politécnico de Bragança e, desde 2004, comendador da Ordem do Mérito da República Portuguesa.
Quis o destino que em 2015, com 64 anos de idade, um tumor cerebral, por ironia, instalado precisamente na parte corporal mais insigne deste vulto da inteligência e cultura portuguesa, lhe colhesse a vida.
Não sei o que teria sido de mim sem os apontamentos de Penal I do Amadeu que, dizem, eram um misto de aulas desgravadas do Prof. Rui Pereira, com interpretações e glosas feitas com mestria pelo insigne aluno.
Gravar as aulas plenárias dos professores ( com o consentimento dos mesmos) e depois passar o conteúdo das mesmas para o papel, era uma tarefa hercúlea, mas, com um pouco de sorte, durante um ano letivo completo, calharia uma única vez a uma parelha de alunos. Claro que todos colhiam o beneficio, pois fazia igualmente parte da tarefa fornecer cópias a todos os alunos que fizessem parte do grupo e receber, do dito grupo, as cópias das outras aulas.
Era um sistema (quase) perfeito mas ninguém podia falhar.
Mas, como em tudo na vida, há sempre um lado anedótico:
A colega X, tendo ficado encarregue de gravar e desgravar uma determinada aula - a cidade universitária é constantemente sobrevoada a baixa altitude por aviões comerciais, pois fica na trajetória de aproximação à pista principal do Aeroporto da Portela - não consegui descortinar determinadas frases e sempre que havia lapsos do texto, desenhava um avião. E foi assim que, um dia, cerca de 80 alunos que integravam um grupo de alunos-desgravadores, recebeu a fotocópia de uma aula desgravada, com frases interrompidas a meio por desenhos de aviões. Era hora de ponta, disse ela. Não sei se a desculpa humorística teve uma boa receção.
sexta-feira, 14 de setembro de 2018
O Reencontro
Para melhor me entender, foi-me sugerido contatar com um rapazito na casa dos oito anos, uma idade em que as memórias já são firmes, que responde pelo meu nome, no sentido de perceber o que ainda me liga a ele. Sem saber bem como o fazer presencialmente, uma vez que a máquina do tempo não passa de uma efabulação literária, pensei que através da meditação conseguiria atingir em parte os meus propósitos. E foi assim que um dia me deitei na cama, de olhos fechados, fingindo que meditava, sem qualquer treino para o fazer, apenas confiante que o silêncio e a serenidade seriam capazes de me transportar a um determinado tempo e lugar do meu passado.
Embalado por uma sonolência induzida, deixei-me enredar pela espiral do túnel do tempo, fechei os olhos e fui retrocedendo até me fixar numa certa época e lugar.
Era o ano de 1969, aquele em que os homens foram à lua, comandados por Neil Armstrong, o primeiro humano a pisar solo lunar, difundidos toda a noite, a preto e branco, pela Telefunken valvulada, que só estabilizava a imagem mercê das pancadas certeiras dadas pelo meu pai no tampo de carvalho laminado. Os Beatles ainda existiam como banda – os guedelhudos, nas palavras do meu progenitor - e Salazar já não reinava. Com Marcelo Caetano à frente do executivo, a guerra colonial prosseguia nas três frentes e a Pide mudava o nome para DGS. Nixon tomava posse como o 37º presidente dos Estados Unidos da América e a atriz Sharon Tate, juntamente com outras quatro pessoas, é assassinada na casa do realizador cinematográfico Roman Polanski, pela família Mason, naquele que na altura foi considerado um dos crimes mais bárbaros cometidos na sociedade norte-americana.
Foi neste mesmo ano que a 28 de Fevereiro ocorreu um grande sismo. Atingiu o sul do país e a região de Lisboa, mas também foi sentido no norte, sendo o último grande sismo a ocorrer em Portugal Continental, e o mais importante do século XX. Recordo a maioria das notícias, com a compreensão possível a um garoto da minha idade, embora muitas delas fossem tornadas mais brandas pela censura instituída. Tenho boas memórias da aventura que vivi durante o sismo de fevereiro. Na noite em que ocorreu o tremor de terra, como toda gente lhe chamou, face ao conselho que se escutava na rádio, a minha família, juntamente com a nossa empregada, saiu de imediato para a rua, para lugar seguro, longe de construções que pudessem ruir. Ainda éramos apenas quatro elementos, uma vez que os dois irmãos mais novos não haviam nascido.
Passámos grande parte da noite dentro do carro, a escutar as notícias, juntamente com centenas de pessoas que fizeram o mesmo. O terreiro onde tinha lugar a Feira de Almada, uma vasta área com solo arenoso, do tamanho de dois campos de futebol, sem construções nas cercanias, era a garantia suficiente de que nada nos cairia em cima. Apesar dos gritos da minha mãe para me despachar, demorei a sair de casa, pois nenhuma circunstancia me faria abandonar a Fô, a minha gata angorá de longo pêlo branco e almofadas das patas cor-de-rosa, que teimava não aparecer. Ainda arrepanhei alguns livros dos Cinco e dos Sete e a máquina fotográfica Agfa que sempre me acompanhava. Tudo o que para mim tinha um valor insubstituível trouxe comigo. O resto bem podia ruir e desaparecer. O meu mundo cabia dentro daquele Fiat 850.
Pouco passava das três da manhã, o meu pai decidiu que o perigo havia passado e regressámos a casa. Fiquei com pena de ver a desmobilização dos carros no recinto e que a aventura tivesse durado tão pouco. Não fora os quadros da sala fora do lugar e algumas rachas visíveis na pintura,quase diria que tudo não havia passado de mais uma das efabulações da minha infância, daquelas que tanto me entretinham o espírito.
Agora mesmo, desci as escadas estreitas, com degraus em mármore branco, da casa paterna, com as famosas paredes rugosas que todos os dias me faziam sangue nos dedos e nos cotovelos, sempre que subia ou descia a escada em dois degraus de uma assentada, sem desacelerar nas curvas; e encontrei-me frente ao negro e sinistro portão de ferro, com dois enormes lampiões de cada lado, ao estilo de uma mansão do século XIX, do externato Frei Luís de Sousa. Era sábado, o final de uma tarde de verão. Não havia escola, mas, com exceção do domingo, o externato fervilhava sempre com atividades. O salão e o ginásio eram frequentemente alugados para casamentos, aniversários e outros eventos. Eu era uma presença regular nos “copos de água”. Depois de os convidados terem comido e bebido em abundância, já com um grão na asa, não raro, entretinham-se a dançar. Com um invulgar à vontade, entrava no salão e, sem me fazer rogado, atirava-me aos doces e aos croquetes como se aquele fosse o último dia da minha vida. Faziam-me festas no cabelo e eu com a boca cheia de doces sorria. - Que menino tão bonitinho! Toda a gente pensava que eu era filho de um dos convidados da noiva ou do noivo. Já de barriga cheia, saia com a mesma displicência com que havia entrado e respondia sempre com um sorriso às festinhas que invariavelmente me faziam na cabeça. O meu ar de menino família, limpinho e burguês, convencia qualquer um. Nunca fui apanhado e durante bastante tempo banqueteei-me a valer. O segredo era ter descontração e jamais partilhar o bónus com alguém.
Entrando no estabelecimento escolar e virando à direita, começava uma subida íngreme, imediatamente a seguir ao Jardim de Infância, seguida de uma curva acentuada, ladeada por árvores frondosas. Ao cimo, do lado direito, o arvoredo adensava-se e sei que, com alguma probabilidade, poderia avistar-se, sentado sobre uma ramada mais forte, um rapazito
com calções de sarja, magrito, o cabelo muito cortado, com um remoinho teimoso à frente, os joelhos sempre esfolados, mas de olhar vivo e sonhador.
Não sei se conseguiria chegar ao diálogo com ele. Por natureza tímido e fechado no seu mundo interior, provavelmente não me responderia ou dificilmente trocaria palavras com um estranho, mais velho do que o seu próprio pai. Mas, ainda assim, decidi procurá-lo.
Conhecendo-o como o conheço, não errei nas minhas suposições. No cimo de um carvalho de tronco baixo e copa suficientemente ramosa para albergar gente de palmo e meio, lá estava ele sentado em cima do ramo mais grosso, uma perna para cada lado, como quem monta um cavalo, observando os carros que subiam a ladeira e estacionavam no alcatroado do campo de jogos. Reparei que tinha algo na mão. Um pau com uma corda e folhas de cana pregadas numa das pontas. A princípio estranhei o propósito do objeto, mas cedo um sorriso aflorou a minha face. Como poderia ter esquecido? Era o seu cavalo, a sua companhia dileta, a quem ele fornecia os gestos próprios do animal: o som dos relinchos, o resfolegar após longas cavalgadas, o diálogo permanente entre o cavaleiro e a sua montada. O trabalho que o petiz teve para levar o cavalo para cima da árvore, pensei.
«Jó!» – Chamei. Ele ficou assustado. Porventura estaria a pensar que eu o ia repreender por ter abusivamente entrado num colégio que ele já não frequentava, agora que estava na escola do Estado, por vontade imperativa do pai. «Jó!» – Chamei de novo o seu nome.
E quando ele olhou para mim, disse-lhe: «Eu sou tu, mas não te assustes. Não te vou fazer mal. Ainda és feliz, imaculado, e gostava que jamais deixasses a copa da árvore em que te encontras, seguro, sonhador, protegido por um mundo sagrado que é só teu. Ainda não te roubaram a infância, nem o cavalo, ao que vejo. Ainda sonhas… Eu já só consigo fechar os olhos e fingir que sonho e medito. Já não durmo de noite. Deito-me, tão-somente. Vim aqui expressamente para te ver e em especial para te dizer que jamais deves sair deste jardim. O mundo que te espera sou eu e é terrível, acredita-me. Eu sei que não me reconheces, pois eu também não me reconheço em ti. Sei que és petiz, não entendes o que te quero transmitir, mas ainda assim deixa-me falar-te. Não gostava que te transformasses em mim, mas não te prometo que o possa evitar. Sei que deves achar estranho um homem da minha idade dirigir estas palavras a uma criança. Mas acontece que eu sou, ou melhor, transformei-me, no pretérito imperfeito de ti. Gostava de poder voltar a ti. Meter-me dentro de ti e reformular-me. Poupar-te naquilo que te espera. Entendes-me? Eu sei que não, criança. Não te peço para desceres. Eu não me importo de falar cá de baixo, apesar de começar a doer-me o pescoço. Mas esta dor, comparada com outras dores maiores, é uma brincadeira muito igual às que tu fermentas todos os dias. Quando tiveres um pouco mais do dobro da idade que tens, já terás passado por tantos jardins sem rosas, onde todas as flores murcham e o sol custa a entrar, que o sorrir mais não será que uma lembrança, um esgar na tua face magra e sofrida. Lamento tanto ser eu o núncio da tua perene infelicidade, mas acontece que, malgrado a inverosimilhança que separa as nossas vidas, o nosso aspeto físico, as palavras que eu emprego e que tu te limitas a escutar sem as entenderes, eu sou tu. Ou melhor: tu hás-de ser eu. Num futuro não muito longínquo, para mal dos meus tormentos.»
Afastei-me. Deixei aquela criança com um ar aterrado, olhando freneticamente para todo o lado em busca de uma possível ajuda. Nem uma única palavra saiu da sua boca. Apenas o terror plasmado no olhar. Não fui capaz de dizer mais nada. Fica agora na tua paz. Eu vou. Pensei, mas não disse.
Era Setembro. Segui com o rodopiar dos estorninhos rente ao chão e as lágrimas a rebentarem sob os olhos. Senti-me criança outra vez, querendo correr para os braços da minha mãe. Queria que me dissessem que ia ficar tudo bem. Que o dissessem, sobretudo, a ele. Olhei somente uma última vez antes de me afastar. A criança ficava cada vez mais pequenina à medida que eu me afastava da árvore, até se transformar num pontinho ao longe, mas sei que nunca desprendeu os olhos de mim; como um gato assustado; como uma gazela perseguida.
E, por estes momentos, já eu sonhava. Um lobo solitário perseguia uma gazela solitária através de um bosque até à beira de um precipício. A gazela, hábil e conhecedora do terreno, conseguia descer lentamente pelo declive pedregoso, enquanto o lobo corria frenético à beira do precipício, olhando para baixo para a sua presa, tão perto, mas tão inatingível.
Acordei no século XXI com a cabeça enredada em lençóis suados e no medo. O coração batia-me descontrolado. Sei que havia sonhado. Estava consciente do pesadelo que me tinha acordado em sobressalto. Era óbvio que eu era a gazela do sonho. O menino que havia sobrevivido às agruras da vida, por ter ganho defesas bastantes para se defender dos lobos da floresta que é a vida. Mas essa era a parte do sonho que eu aceitava, sem margem para dúvidas, como sendo irreal. O resto era demasiado verdadeiro. O detalhe com que vi aquela criança que era eu. As roupas, o olhar, o cabelo, tudo tão familiar, até a forma tão certeira de saber onde o encontrar.
Eu fui ele até que a vida nos separou. Os elementos da natureza, seja terra, água, flores, folhas, pedras, areia, ou o simples silvo do vento, enriqueciam o comportamento de jogo livre e potenciavam o seu desenvolvimento cognitivo, emocional e físico. Mas isso foi abruptamente interrompido pela urgência com que a vida decidiu terminar a sua infância antes do tempo.
Até que a vida nos separou, eu sei que fui ele. Mas não consegui contactá-lo, falar-lhe numa linguagem que lhe fosse acessível. Apenas o assustei e deixei confuso. Fui desajeitado e patético, inepto para chegar à compreensão de uma criança com oito anos de idade; e estive tão perto de falar com o petiz que eu fui.
Somos seres pequenos e irrelevantes. É apenas o espaço que ocupamos no coração dos outros que nos emociona, que nos dá propósito, orgulho e sentido de identidade. Precisamos do amor incondicional, ilógico e irracional dos nossos pais. Precisamos que nos vejam através de lentes distorcidas por esse amor e que nos digam de todas as formas que o mero facto de estarmos vivos os enche de alegria. A conceção de adulto feliz e maturado pressupõe, em mim, a manutenção de alguns desejos e propósitos da criança que fui. Sei que o meu cavalo não era uma obra-prima, com aquelas franjas feitas de cana a imitar crinas e um cordel tosco como rédea, mas sempre que o retiro do sótão dos meus pensamentos, receio que seja maldição do destino recriar a infância na vida adulta. E depois interrogamo-nos por que motivo não somos felizes.
quarta-feira, 5 de setembro de 2018
A maltinha do Equador
Quando se pensa no Equador, o país de maior biodiversidade do mundo por unidade de área, vem no imediato à nossa mente aquele pequeno país da América do Sul, limitado a norte pela Colômbia, a leste e a sul pelo Peru e a oeste pelo oceano Pacífico, cortado a meio pela linha imaginária do equador.
O país é dominado, na sua parte central, pelos Andes, a maior cordilheira do continente americano e detém a soberania das ilhas Galápagos (património Mundial da Unesco), que distam apenas a cerca de 1 000 km do território continental, onde nasceu o evolucionismo, criado pelo britânico Charles Darwin.
Imagina-se igualmente pessoas com aspeto de Incas, os descendentes daqueles que sobreviveram aos massacres sanguinários liderados por Francisco Pizarro - foram ainda mais os que morreram face às doenças transmitidas pelos colonizadores, para as quais não possuíam anticorpos.
Atualmente, a maioria da população equatoriana é mestiça, descendente dos colonizadores espanhóis que se miscigenaram com os povos indígenas - os espanhóis e os portugueses, contrariamente aos colonizadores da Europa do Norte, por todas as terras por onde passaram, sempre deixaram a sua semente e a mistura produzida criou um povo com traços sui generis e particularmente belos.
O IPL de Leiria celebra diversos protocolos com vários países, de forma a possibilitar a aprendizagem da língua portuguesa e posterior frequência de um curso de licenciatura, a jovens oriundos de várias partes do mundo.
O refeitório da ESECS, onde frequentemente almoço, acolhe desde há poucos dias um grupo considerável de jovens equatorianos. E, à conversa com alguns deles, no meu fluente portunhol, fiquei a saber que se encontram a frequentar um curso intensivo de língua portuguesa. No final, para os que tiverem aproveitamento, será possibilitada a frequência de um curso de licenciatura no IPL de Leiria.
No meu imaginário precoce, quem sabe burilado pela leitura do Tintin nos Andes, os equatorianos fazem-se acompanhar por lhamas, trajam roupas andinas multicoloridas, ponchos largos e usam chapéus e colares ao redor do pescoço; e, da sua indumentária, deve obrigatoriamente fazer parte uma flauta de pã e um adufe.
No mundo globalizado onde vivemos, não fora os traços mestiços, o tom moreno da pele e os cabelos negro azeviche, que denunciam a proveniência sul-americana, os jovens que hoje soltavam risadas no refeitório, eram assustadoramente iguais aos seus congéneres ocidentais: o mesmo corte de cabelo à Justin Bieber, as tatuagens, os piercings, os brincos, as calças rotas, as sapatilhas, o tique inexorável dos polegares, que freneticamente deslizam nos ecrãs de telemóveis...
A Aldeia Global, com a criação de uma rede de conexões, que deixam as distâncias cada vez mais curtas, facilitando as relações culturais e económicas de forma rápida e eficiente, criou modelos estereotipados de jovens que seguem afanosamente os seus ídolos, com os quais se identificam e desejam imitar.
Mas, como em tudo, há os prós e há os contras, recordando o álbum conceptual de Roger Waters "The Pros and Cons of Hitch Hiking". Esperemos que os efeitos perversos desta irrevogável globalização, a que todos pedimos boleia, sejam mitigados pelo encontro do melhor dos mundos.
segunda-feira, 30 de julho de 2018
A distância de um abraço
Há doze anos que percorro com alguma regularidade a estrada entre a cidade do Lis e Almada. Sempre que posso, evito a auto-estrada e opto pela nacional 1. Atualmente chamam-lhe IC 2, mas nos meus tempos de menino, quando em família viajávamos até ao Porto ou em excursões à Serra da Estrela, chamávamos-lhe simplesmente a "estrada para o Porto". O troço da auto-estrada entre Lisboa e Vila Franca de Xira, foi inaugurado no ano do meu nascimento, mas somente em 1991, volvidos 30 anos, as duas maiores cidades do país ficaram ligadas por auto-estrada.
Nos anos sessenta, a modernidade acabava quando deixávamos o troço da auto-estrada em Vila Franca de Xira e nos embrenhávamos na estrada nacional, enfileirados atrás dos vagarosos camiões que transportavam mercadorias entre as duas cidades principais. A "Ponderosa", para os lados de Alenquer, era paragem obrigatória dos excursionistas. Um eventual arranjo entre os donos do café/restaurante e os motoristas, que a mim, criança, me passava despercebido, fazia com que todos os autocarros de excursão parassem naquele lugar, para satisfação das necessidades fisiológicas e um cafezinho.
Se a paciência abunda e a pressa de chegar não é soberana, vou sempre pela nacional. Conduzo uma Yamaha X MAX 250cc que, além de ser bastante confortável, económica e segura, faz velocidades de cruzeiro relativamente baixas, o que permite o deleite integral da paisagem. Quando conduzia a Yamaha FJR 1300 ou mesmo a Aprilia Caponord ETV 1000, chegava mais rápido ao meu destino, mas gastava incomensuravelmente mais combustível e as únicas sensações que retenho dessas viagens, são as ultrapassagens estrondosas e uma estranha incapacidade para conduzir no respeito dos limites de velocidade permitidos.
Hoje tenho tempo. É bom ter tempo e não viver confinado à ditadura dos prazos, dos horários, do tempo controlado e imposto à nossa vontade.
Sigo direito à Batalha e passo rente ao mosteiro, que agora tem umas barreiras acústicas celebérrimas, para salvaguarda dos impactos de ruído e poluição sobre o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, declarado património da Humanidade pela UNESCO. E tudo por causa do "impacto ambiental" - adoro esta expressão, mas ainda gosto mais do vocábulo "sustentável". Tudo o que não seja "sustentável", nos dias que correm, não presta, pelo menos até à invenção de uma nova expressão ou teoria.
São Jorge, Cruz da Légua e Aljubarrota vão ficando rapidamente para trás. Saí de casa às 13h00, pois almocei bastante cedo, e sigo viagem em bom ritmo. Há pouco trânsito. Tenho o depósito atestado e não conto parar. A manhã, a principio bastante nebulosa, deu lugar ao início de uma tarde solarenga com uma temperatura convidativa ao passeio. Depois da Benedita e da Venda das Raparigas - o meu falecido pai tecia sempre piadas de franco mau gosto cada vez que passámos por este lugar - a paisagem começa a ser deveras encantadora. À minha esquerda, na Serra de Aires e Candeeiros, as enormes ventoinhas eólicas não cessam de rodopiar, enquanto um ou outro estorninho faz rasantes à roda dianteira da mota e os mosquitos vão-se estatelando na viseira do capacete. Pouco antes do corte para Rio Maior, a Serra dos Candeeiros fica para trás e a sensação de nos encontrarmos no Ribatejo adensa-se. A seguir vem Alcoentre, terra sobejamente conhecida por albergar um dos maiores estabelecimentos prisionais do país; e depois Aveiras de Cima e Aveiras de Baixo, terra que só tem significado para mim como nome dado a uma estação de serviço da auto-estrada.
Sigo na direção da Azambuja - terra da antiga fábrica da Ford - e Vila Nova da Rainha, que tem um avião de caça à beira da estrada, para relembrar que é o berço da aviação portuguesa e onde existiu a primeira escola militar de aviação. Depois, segue-se o Carregado, a localidade com o maior outlet do país e onde teve início a primeira viagem de comboio em Portugal, Castanheira do Ribatejo e finalmente Vila Franca de Xira. Agora, à medida que me aproximo de Lisboa, o trânsito é muito menos fluído. As paisagens campestres dão lugar a edifícios feios, urbanizações caóticas, lixo urbano, grafitis nas paredes, cartazes rasgados e estradas esventradas. Um pouco por toda a parte a pegada humana faz-se sentir. Os detritos da nossa existência tomaram conta do que outrora foram campos semelhantes àqueles que alguns quilómetros havia deixado para trás. Pouco já há para saborear no que à paisagem respeita e o interesse é chegar rápido.
Deixo para trás, Alhandra, Vialonga e Póvoa de Santa Iria. Todas partilham da mesma fealdade pragmática dos subúrbios. São ilhas onde se concentram pessoas de baixos recursos que não conseguem comprar ou arrendar casa na capital. De semáforo em semáforo, vou volteando pelo meio do trânsito, com manobras próprias de muitos anos de motociclista, até encontrar uma escapadela para a 2ª Circular em direção ao Eixo Norte-Sul. Antes das 15h00 já me encontro em cima da Ponte 25 de Abril a saborear uma aragem fresca que alivia o calor que sinto na cabeça. Já só penso em ver-me livre do capacete.
Subo a Avenida Bento Gonçalves e estaciono a mota frente ao Café Central de Almada. Acabei de perfazer cerca de 180 kms. A primeira personagem com que me deparo é o Zé Sobral. Tanto quanto recordo, nos anos 70, já invariavelmente o avistava todos os dias naquele local. O Zé Sobral mora a poucos metros do Central e fez toda a sua vida naquela circunscrição geográfica. Dantes, sei que vendia droga e ocupava-se de pequenos delitos, no intervalo de outros expedientes mais honestos. Encontro-o bastante magro, pele e osso, as tatuagens dos braços e do pescoço mirradas na pele queimada por muitos anos de sol, mas o mesmo semblante de sempre. Arruma cadeiras numa esplanada do outro lado da praça, levanta as mesas e varre o chão. Ao que me disseram, ganha para o tabaco e para alguma bucha. Tem uma doença qualquer. Não parece reconhecer-me ou, se calhar, finge não saber quem eu sou. Desvio o olhar em sinal de respeito pela sua condição e entro no café. Ao balcão peço um bolo podre. Há cinquenta anos atrás, elegi-o como o bolo da minha predileção e sempre que me davam uns trocos, juntava dinheiro para comer um. À época, era das maiores satisfações que a vida me dava. Uma homenagem ao travo das coisas simples.
A X Max 250cc ficou no parqueamento subterrâneo do Pingo Doce, pois Almada é terra de larápios. Logo em frente é a casa da minha mãe. Subo no elevador e rodo a chave na porta. Entro na sala de estar e a minha velhinha nem me deixa pousar a mochila. Levanta-se, abraça-me e diz: "Meu rico filho. Tenho rezado tanto por ti!". Também a abraço e ficamos juntos no sofá a ver a televisão sem som. A mãe é surda e não acha necessário subir o volume do som. E eu não me importo. Estamos juntos.
domingo, 29 de julho de 2018
Quando a bota não bate com a perdigota
É da natureza das coisas que as afinidades atraiam pessoas a interagirem entre si. Normalmente, a afinidade é definida quando há um encontro de identidades ou personalidades semelhantes entre duas pessoas. Ter afinidade é ter sintonia com as mesmas ideias, gostos e sentimentos característicos de outra pessoa. É também o sentimento de pertença a um mesmo grupo social e a convicção que ambos partilham de se encontrarem “ao mesmo nível”, seja por se acharem ambos atraentes, terem estaturas físicas semelhantes, níveis de cultura idênticos, ou, porventura, situarem-se no mesmo patamar social. Os motivos que levam duas pessoas a sentirem atração uma pela outra, são muitas vezes o somatório de características comuns e a empatia, dizem, é a base para um bom relacionamento.
Mas se é verdade que comummente vemos médicos casados com médicas e/ou enfermeiras, professores consorciados com professoras, advogados com companheiras que trabalham na área da Justiça, membros do exército e dos corpos policiais que encontraram a sua parelha nas instituições a que pertencem e invisuais ou surdos-mudos que encontram parceiro/a em virtude de uma deficiência comum, as exceções não são tão insignificantes como se possa julgar.
É natural que encontremos a nossa cara-metade dentro da mesma profissão ou no seio dos grupos onde mais interagimos, mas as redes sociais e a possibilidade atual de se conhecer alguém fora do nosso universo socioprofissional e geográfico, vieram possibilitar o que outrora seria estatisticamente improvável. Conheço, inclusive, pessoas que desejariam conhecer alguém, com intuitos relacionais, de preferência, fora do seu circuito profissional e social. No entanto, as regras que ditam a aproximação entre duas pessoas, ainda continuam a ser a empatia e o sentimento de identidade comum.
Decidido a comprovar empiricamente estes pensamentos, desde há alguns dias que observo com curiosidade os casais que passam por mim. Para não parecer um voyeur ou um qualquer tarado em fase maníaca, decidi que o melhor seria observar as pessoas numa grande superfície onde, à falta de imaginação fértil, os casais passeiam regularmente aos fins-de-semana. As pessoas estão entretidas a ver as montras e eu posso estar tranquilamente sentado num daqueles sofás bué de confortáveis, colocados à disposição das almas mais fatigadas.
Observo o par que está sentado à minha frente. São o protótipo do casal aldeão de meia-idade que, de quando em quando, vem à cidade, mais concretamente, ao shopping, lavar as vistas com coisas chiques. Parecem estafados da caminhada pelos longos corredores e nota-se que não se sentem à vontade com os trajes domingueiros que envergam. Ela usa uns brincos de oiro parecidos com os da minha avó materna, que nunca os tirava, e que um dia vi na palma da mão da minha mãe. Fora ela, minha mãe, quem lhos retirara das orelhas já no leito de morte; e, sendo a única filha sobreviva, ficara com eles.
O marido usa um chapéu dos anos 50, suspensórios de elástico e tem uma barriga tão proeminente que parece ir rebentar a qualquer momento. Não interagem um com o outro, nem há quaisquer mostras de carinho ou cumplicidade. Limitam-se a estar sentados em silêncio e olham no vazio do longo corredor. Estão provavelmente cansados e a ganhar forças para o regresso a casa. Mas parece-me evidente que estão unidos por um destino comum, incapazes de viver um sem o outro, quem sabe, juntos o tempo de uma vida, até que a morte os separe.
Ao meu lado sentou-se um casal relativamente novo. Não têm mais de trinta e poucos anos. São ambos obesos e comem com sofreguidão o conteúdo de dois baldinhos de gelados Häagen-Dazs, acabados de comprar na loja em frente. Cada um deles exibe uma tatuagem semelhante, desde o ombro até ao antebraço, em forma de flor de cor púrpura e azul anil. Vestem roupas muito idênticas e são fisionomicamente parecidos. Não tenho dúvidas que nasceram marcados para se conhecerem. Ela foi a primeira a acabar o gelado. Limpou-se a um lenço de papel e já está a surfar no telemóvel. Utiliza com bastante destreza o polegar direito para fazer deslizar as páginas que vão passando no écran. Usa e abusa do “bué da fixe”, ri alto, sem se importar com quem está ao seu redor, enquanto vai visionado publicações no Facebook. O companheiro, ainda de volta da lambedura do gelado, vai deitando o olho ao telemóvel dela e, sempre que não tem a boca cheia, exclama com veemente aprovação: “Épico, minha, épico!”.
Nos meus tempos de estudante liceal, o género épico era uma narrativa em versos, que enaltecia episódios heróicos da história de um povo. Acho curiosa a apropriação que a juventude atual faz destes termos para uso em contextos diametralmente diferentes.
Não tenho qualquer dúvida de que esta parelha nasceu para se complementar. Houve tempos em que ser gordo era sinónimo de bem-estar social e algo benigno. Magros eram os pobres. Na atualidade inverteram-se os valores e a realidade – os alimentos ultraprocessados e mais baratos ao alcance dos menos abonados criaram obesos, com acrescento de culpa. Mas nada disto gera preocupação neste anafado casal que, suspeito, muito faz ranger as molas do colchão lá por casa.
A minha vista concentra-se agora num casal gótico que acabou de passar. Estando nós em Julho, acho estranho ver estas personagens por aqui, uma vez que o Festival Extramuralhas, um dos maiores eventos do género a nível europeu, dedicados à cultura gótica, que acontece todos os anos na cidade de Leiria, tem tradicionalmente lugar nos últimos dias de agosto.
Usam piercings em ambas as orelhas, as tatuagens cobrem-lhes quase por completo as partes do corpo expostas, trajam de negro e calçam fracas imitações de botas Doc Martens. Ela tem o cabelo pintado de negro azeviche e os lábios de roxo. Ele tem o cabelo rapado e a cabeça tatuada com símbolos esotéricos. São fiéis representantes da identidade do grupo gótico e fazem questão de exibir os símbolos e comportamentos comuns associados à tribo a que sentem pertencer.
Foi em Londres, corria o ano de 1978, que tomei contacto pela primeira vez com esta subcultura urbana, que teve início no Reino Unido durante o final da década de 1970 e início da década de 1980. Os meus 17 anos de idade e especialmente o facto de viver num país recém-saído de 40 anos de trevas, não me conferiam qualquer preparação para o que me foi dado ver na capital inglesa no final dos anos 70. O que agora observo neste casal passante é uma reprise mal-amanhada das personagens desse movimento de contra cultura, o punk - descaradamente violento, quer nas expressões musicais, no culto gratuito da discórdia ou na agressividade do vestuário – que à época vi surgir na Grã-Bretanha e do qual os góticos são uma variante suave.
O casal está em perfeita consonância. Aliás, nem imagino um gótico gostar de um tipo como eu. Um gótico só pode juntar-se a outro gótico, tal como um crente fervoroso de um culto religioso não se imagina emparelhado com um ateu ou um praticante de um culto oposto. E o curioso é que eles devem achar que eu sou um careta insignificante, farinha do mesmo saco, com a mesma petulância com que eu, em pensamento, os rotulo de outsiders e inviáveis. Nestes casos, pertencer-se a uma tribo comum, é uma condição inultrapassável para um acontecimento relacional de cariz amoroso.
O meu olhar dirige-se agora para um casal na casa dos 40 anos. São os dois altos, bonitos, com ar inteligente e saudável. Vestem roupas caras mas bastante confortáveis. Ele calça sapatos de vela, polo Ralph Lauren e calças chino Sacoor Brothers, tudo a condizer. A mulher traja um vestido branco com bordados azuis e calça uns ténis de marca. Não se limitam a ver as montras, pois transportam sacos com os logótipos de lojas de referência. São pessoas com posses. Passam de relance, mas consigo de imediato ver neles a empatia necessária à completude de uma casal. Nota-se que “foram feitos um para o outro”.
Decido levantar-me e dar uso às pernas. Erguer-me desta nuvem de preguiça, que me faz estar refastelado no sofá verde, sem me apetecer fazer mais nada que não seja observar os casais que passam, ignotos da minha aventura voyeurista.
Dirijo-me à porta de saída do shopping e passa por mim um casal assaz curioso. Ele tem o cabelo rapado e uma longa barba com reminiscências jihadistas. Da orelha direita, pende-lhe um brinco de argola tão grande, que dava para pendurar as chaves de casa e mais algumas utilidades. Veste umas jardineiras e calça uns ténis simples. A rapariga é loira, bastante bonita e é seguramente 10 cm mais alta do que ele. Além disso, é mais nova. Usa umas calças às riscas, que lhe realçam as formas voluptuosas, e uma túnica curta. Parecem formar um casal feliz, descomplexado e, com franqueza, não os imaginava juntos. É a primeira desconexão a que assisto ao fim de meia hora de observação. Mas depois, já na rua, comecei a ver com mais regularidade outras assimetrias e constatei que a regra tem tantas exceções, que chega a ficar ameaçada a sua condição de regra.
Enquanto me dirigia para o automóvel, absorto no pensamento da inutilidade de todo este meu exercício, dei uma mirada instintiva na enorme superfície vidrada das portas do centro comercial e, de relance, observei a minha figura refletida. Assustei-me com a imagem que a vidraça me devolveu, pois não encontrei semelhanças mínimas com qualquer das criaturas objeto da minha observação. E todas as mulheres que passaram por mim e que imaginava podendo fazer parelha comigo, tinham a seu lado um indivíduo totalmente diferente da minha pessoa. Posso imaginar que jamais me escolheriam como parceiro, mas procuro refúgio no consolo da exceção que contraria a regra, na bota que não bate com a perdigota. E se as afinidades são cruciais para uma comunicação plena e para o bom funcionamento de uma relação amorosa, muitas vezes são as particularidades do outro, as diferenças, e as assimetrias que fazem alguém apaixonar-se. Se no final a coisa resulta bem, é outra conversa que aqui seguramente não vai ter lugar.
Das dores crónicas
Já escutei chamar poetas do quotidiano aos cronistas dos nossos dias, talvez por causa do seu discurso que se move entre a reportagem e a literatura, entre o oral e o literário, entre a narração impessoal dos acontecimentos e a força da imaginação.
Na crónica, há uma ideia pacificamente aceite de que, mais do que um diálogo com o leitor, existe um forte monólogo com o sujeito da enunciação, já que a subjetividade percorre todo o discurso e o derramar das palavras ocorre muitas vezes ao sabor da vertigem do pensamento.
Trata-se um exercício livre, sem deadlines, imposições temáticas ou preocupações com o juízo de quem nos lê. É por isso que gosto particularmente deste discurso livre, errático, que oscila entre o profundo e o brejeiro e cujo valor reside essencialmente na genuinidade despudorada das palavras.
Eu não sei se o que me proponho publicar são crónicas ou simplesmente prosa livre. Prefiro de longe a não rotulagem e só por comodidade chamarei crónicas aos escritos que tenciono postar - este feio neologismo - com alguma regularidade nesta rede social (somente visíveis para algumas pessoas). A escrita é (quase) sempre uma catarse, uma espécie de alívio e libertação e, sobretudo, uma forma de falarmos sem sermos interrompidos.
Há dores crónicas que nada têm a ver com as ditas crónicas das letras, mas que afligem diariamente muita plebe que não sabe o que fazer com tamanha frustração. A dor de cotovelo é um paradigma desta maleita que prolifera e é identificável em quase todos os lugares. É constatável nas conversas nos cafés, nos restaurantes, nos espaços públicos em geral, mas sobretudo nas redes sociais e chega a nausear, tanta a repetição da boçalidade falha de originalidade.
É fácil detetar os crónicos da frustração e da inveja pelos sinais de baixa auto-estima que mimeticamente emitem, pois as frases que verbalizam ou escrevem são invariavelmente as mesmas: "tenho a universidade da vida"; "aquele gajo lá por ser doutor não deixa de ser mais burro do que eu"; "sou uma pessoa simples (leia-se: inculta, iletrada) e (só) gosto de pessoas simples ( as outras, como não as entendo e ofendem-me por serem diferentes de mim, odeio-as); " na fábrica substituía muitas vezes o engenheiro e até sabia mais do que ele"; "não sou doutor mas não sou burro!"; " eu toda a vida trabalhei e não estive sentado a uma secretária"
Os exemplos multiplicam-se e não serei o único que está cansado de escutar e ler impropérios deste género a despropósito de coisa alguma. Basta, digo eu! E é para mim um alívio falar hoje destas coisas. Ninguém é mais do que ninguém e todos temos o nosso valor. A nossa sabedoria soçobra perante a grandeza da nossa ignorância em assuntos que não dominamos e desconhecemos em absoluto. O que seria de mim sem os sapateiros, os canalizadores, os médicos, os padeiros, os enfermeiros, os informáticos, os engenheiros, os agricultores, os pescadores, os serralheiros? Nós somos aquilo para que nos treinámos durante o percurso da nossa vida e, pela lógica da especialização, ninguém consegue ser bom em tudo. Todos dependemos uns dos outros e temos de ter a humildade de aprender e confiar naqueles que treinaram certas valências que para nós são absurdos desconhecidos.
As coisas existem. Estão lá. Não vale a desculpa eterna, a lamuria recorrente, a inveja peçonhenta e sabe-se lá o sacrifício que muitos fizeram para alcançar os patamares a que se propuseram. Quem quer uma coisa tem de lutar para o conseguir, fazer escolhas, desistir de algo em prol de prioridades, dispor-se ao sacrifício. A regra é igual para todos. Não sei de outra forma de conseguir alguma coisa que tenha desejado muito. O contrário é a conformação com uma dor crónica de inveja: o eternizar de uma mediocridade auto-infligida e desejada.
sábado, 3 de março de 2018
Corrupção - um mal endémico
Razão tinha o cínico e sempre atual Maquiavel nos sábios conselhos que dava aos monarcas para a manutenção do poder. É verdade que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente.
Felizmente que hoje já não há muitos poderes absolutos que permitam corrupções totais e, sendo assim, consegue-se ir vendo muitos gatos escondidos com o rabo de fora.
São relações de poder as que as pessoas experimentam todos os dias nos empregos, nas relações sociais e até nas amorosas. Tem sempre mais poder quem, por deter, ainda que no momento, qualquer coisa que é importante para o outro, é o dominante na relação. E para além de obviamente haver sempre a possibilidade da perda do cargo que se detém, a doença, a velhice ou a morte são limites absolutos a qualquer poder personalizado. Há também a circunstância trágica de quem detém com volúpia um dado poder conviver dia a dia com o medo: o imenso e aflito medo da perda.
Não há dia em Portugal em que os cabeçalhos dos jornais não noticiem figuras públicas eventualmente envolvidas em casos de corrupção. À parte a Itália - que tem como "desculpa" o ex-libris da milenar máfia -, o nosso país aparece sempre na linha da frente dos países da União Europeia com maior índice de corrupção.
A corrupção, quer na forma ativa, quer na forma passiva, é uma doença crónica, hereditária e degenerativa, sem cura conhecida. E a única coisa que podemos fazer - aqueles que, por ora, ainda não se deixaram corromper - é combater sem tréguas o fenómeno, não hesitando em denunciar todos os casos que tenhamos conhecimento.
Mas o pior de tudo é a acomodação. A atitude (quase) inevitável para quem assiste diariamente às denuncias e sabe de antemão que a culpa vai morrer solteira. Os ilustres acusados são, regra geral, demasiado chiques para conhecerem o meio prisional, têm demasiado poder e dinheiro para contratar a melhor defesa e usam de expedientes dilatórios que a própria lei lhes faculta.
Podemos, a contrario, seguir a via brasileira, parodiando os casos de corrupção nacionais; e, inclusive, acharmos-lhes graça, como parte integrante da nossa cultura, usos e costumes. Uma espécie de folia nacional, como fora um Carnaval que durasse todo o ano.
Leiria 2007*
* O panorama, dez anos volvidos desde que escrevi este texto, não mudou, antes pelo contrário, encontra-se atualissímo e em altas.
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