segunda-feira, 27 de junho de 2022

Espiritualidade

 



Até há bem pouco tempo permaneci de costas voltadas para a espiritualidade, entendida esta, em sentido restrito, como a que se conecta com uma dada religião. Para isso terão em muito contribuído os maus exemplos, a falsa religiosidade, as práticas fascizantes e a tremenda hipocrisia, que, desde tenra idade, comecei a decifrar nalguns adultos que me rodeavam.

Com seis anos de idade, recordo como se fosse hoje, fui levado para a Igreja de Santiago, conhecida como a Igreja Velha de Almada, e deixado entregue aos escuteiros - que haveriam de me integrar posteriormente nos “Lobitos” (uma nomenclatura que, presumo, já não existe nos dias atuais no escutismo católico).

Fiquei lavado em lágrimas porque pela primeira vez era “abandonado” pelos meus pais junto de adultos que desconhecia. Senti, talvez em estreia absoluta na minha vida, a sensação horrível que é a falta total de segurança e amparo. Chorei novamente, desta vez de alegria e conforto, quando passadas algumas horas os meus pais me foram buscar.

Foi nesse dia que conheci o António Valverde, com a categoria de chefe do agrupamento escutista, já falecido, o chefe do grupo, o Machado e os caminheiros Cesino Alves e Augusto Carreira. Os lobitos Nuno Valverde, Pedro Condessa, entre outros cujo nome não recordo, já eram meus amiguinhos de outras andanças, também ligadas ao catolicismo.

Foi graças ao escutismo que ganhei o gosto pela natureza e pelas caminhadas, o respeito pelos animais, a responsabilidade ecológica, a aprendizagem do desenrascanço, a prática de cozinhar, os diversos nós do escuta, a arte de fabricar uma casa no cimo de uma árvore, a manufatura de suportes de madeira para suster as tendas, as valas abertas em seu redor para que a água de uma eventual chuva não encharcasse o pano, o ateamento de fogueiras sem fósforos, somente com recurso à fricção de paus ou pedras.

Sempre que acampávamos e tínhamos de montar as nossas tendas (não havia verba suficiente para comprar tendas e as nossas eram feitas com o pano usado das velas das faluas do Tejo - uma espécie de bote grande, com velas, usado na descarga de navios - presumo, oferecidas aos escuteiros) éramos deixados entregues à nossa própria responsabilidade.

Foi graças ao escutismo que ganhei um amor precoce pela autonomia e pela independência, características que integraram a formação da minha personalidade e que ainda hoje me forram e têm guindado os meus desígnios. Os livrinhos de Robert Baden-Powell “Escotismo Para Rapazes” e “A Escola da Vida” eram as nossas bíblias. Estava lá tudo aquilo que nós lobitos precisávamos saber. O primeiro foi o livro que há mais de cem anos deu origem àquele que se viria a tornar o maior movimento de jovens a nível mundial: o escutismo.

O que menos gostei durante a minha permanência no escutismo foram as obrigações religiosas, as procissões, as promessas de novos escuteiros e, particularmente, os domingos na missa, fardado a preceito, ladeado por bandeiras, escutando ladainhas a que quase nenhum de nós prestava atenção.

Com a passagem para o estado juvenil, ainda antes da Revolução de Abril, a tomada de consciência das enormes incongruências das pessoas ligadas à Igreja Católica, que me rodeavam e formataram a minha infância, fazia-se anunciar forte na minha mente. O afastamento da Igreja foi rápido e definitivo. As recorrentes práticas misóginas – nunca a Igreja Católica permitiu que as mulheres fossem ordenadas sacerdotes - o conservadorismo intenso, a severidade das catequistas que impunham castigos físicos aos seus discípulos, o calvário dos seminaristas, o alinhamento com a extrema-direita, os pecados pedófilos dos padres, a hipocrisia desmesurada daqueles que frequentavam a missa aos domingos e, depois, na vida real, eram os piores seres humanos que se possa imaginar. Tudo isso me fez afastar da espiritualidade. E, talvez por falta de maturidade, capacidade de pensamento analítico mais profundo, tomei aquela parte que eu conheci como sendo o todo.

Passaram cinquenta e cinco anos e ainda mantenho contacto regular, ainda que virtual, e amizade com algumas das pessoas que fizeram parte no meu ritual iniciático de escuteiro, quer como dirigentes ou como lobitos, como eu. Guardo religiosamente numa moldura, o certificado, com o desenho de Baden-Powell no canto superior esquerdo, amarelado pelo tempo, que documenta a minha Promessa de Escuta no dia seis de fevereiro do ano de mil novecentos e setenta e dois.

“A mente é como um paraquedas, só funciona depois de aberta". Muitas vezes atribuída ao falecido Frank Zappa, um guitarrista fenomenal e uma espécie de guru para uma legião de seguidores, esta frase, independentemente da veracidade da fonte, foi por mim apropriada para que faça sentido neste discorrer de pensamento. A minha mente, como o paraquedas do Zappa, que é disso que se trata, abriu-se recentemente para um fenómeno novo: a espiritualidade.

Sempre soube distinguir entre o Bem e o Mal e, em consequência, fazer as minhas escolhas. E as vezes que escolhi o Mal em vez do Bem foram quase sempre em meu próprio prejuízo. A minha relutância em praticar o Mal é quase limitada à legítima defesa e nas poucas vezes que fiz mal a alguém, a culpa foi tão grande que saí sempre perdedor.

Muitos estudos de cariz psicológico provam as evidências de que a religiosidade e a espiritualidade têm correlação com a qualidade de vida, atuando principalmente no enfrentamento em situações adversas. Duvido que alguma vez perca a minha racionalidade e aquilo que considero lógico. Jamais conseguirei aceitar dogmas burilados por mentes alheias sem exercer sobre eles o meu pensamento crítico. Mas alguma coisa está a mudar na minha vida, porque passados muitos anos encontro necessidade de ir ao encontro da espiritualidade, seja o que for que isso signifique. Não concebo voltar as costas à racionalidade, mas estou, talvez pela primeira vez, disposto a que o metafisico entre na minha mente e no meu coração e é algo que sinto tentado experimentar.



Neste texto, voltei ao passado, aos meus anos precoces. E isto são para mim recordações eternas que me conquistam definitivamente. Desista de me ler quem busca um fio coerente nas minhas narrativas, uma afirmação rotunda, uma narrativa concisa. Vou cambiando ou se calhar descobrindo, em cada dia que passa, facetas de mim próprio que eu próprio desconhecia.



Dedico estas linhas aos meus grandes amigos de infância Pedro Condessa e Augusto Carreira.

Bem hajam!

Leiria, 26 de junho de 2022






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