sexta-feira, 10 de junho de 2022

Miranda no 10 de Junho de 2022

Em 1981, o catedrático, Professor Doutor Jorge Miranda, foi meu Professor de Ciência Política e Direito Constitucional I na FDL. Mais tarde, num mestrado, foi de novo meu docente. Sempre lhe reconheci extrema competência científica, a par das suas notórias excentricidades. Vi-o agora mesmo, na CNN, como se 4 décadas tivessem passado por eles sem fazer ruínas. Este ano, o insigne jurista é o mestre das cerimónias do 10 de Junho.

Jorge Miranda, Adriano Moreira, Oliveira Ascensão, Suarez Martinez, Freitas do Amaral e o nosso atual presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, entre outros, foram todos meus professores. Há muitas histórias sobre o Professor Jorge Miranda e também sobre outros membros do corpo docente da FDL. Algumas são narrativas fantásticas ou exageradas, para não dizer inventadas, e passaram de geração em geração por tradição oral; mas outras há que são demasiado reais, passo a tautologia. É sobre algo que presenciei, pois aconteceu no decurso da minha prestação de exame oral com o dito Professor, que vou relatar dois episódios, à luz dos dias de hoje, considerados intoleráveis e com teor fascizante ou de muito mau gosto.

Nos anos 80, bem como, presumo, também terá acontecido, nos anos anteriores, nenhum homem prestava provas orais perante o Professor Jorge Miranda sem ter uma gravata e um casaco vestido. Às alunas, o constitucionalista, proibia o uso de mini-saias ("roupa indecorosa", nas suas palavras) - no entanto, existiam professores que, pelo contrário, gostavam das indumentárias arrojadas das alunas e sonhavam com eventuais prémios futuros por lhes mostrarem alguma benevolência. Era um jogo de sedução bastante usual na época e funcionava com alguns docentes.

Sabendo eu das exigências do lente, no que ao dress code dizia respeito, aparecia trajado com fato domingueiro, como se já fosse um "doutor", mas uma grande parte dos alunos esqueciam de trazer os preciosos adereços. Na maioria das vezes, os examinados que já tinham terminado as suas provas orais, emprestavam o casaco e a gravata aos alunos desengravatados e sem casaco. O truque resultava e a exigência bizarra do catedrático cumpria-se.

O Sr. Charneca, um auxiliar de ação educativa que, à época, antes do eufemismo - um neologismo parido numa qualquer reforma posterior - se chamava contínuo, era considerado uma instituição no seio dos alunos e funcionários. Era um homem idoso, quase analfabeto, e, para arredondar o magro salário, vendia à porta da Faculdade "aulas desgravadas", putativamente atribuídas a diversos docentes, sem que estes revissem os textos ou sequer autorizassem a prática. Para promover um maior sucesso no seu negócio - a prática era tolerada há décadas por todas as direções da Faculdade - classificava e glosava os apontamentos com menções por ele inventadas do tipo: "aulas muito boas e completas!"; " matéria que vai sair nos exames finais!"; “ Resumos excelentes!”. Fotocopiava vários exemplares, os originais eram-lhe oferecidos pelos alunos, e tinha uma banca à porta da Faculdade onde habitualmente passava grande parte do dia.

Jorge Miranda, face à sua conhecida personalidade rígida e intolerante, a raiar o doentio, foi o único Professor a ameaçar diretamente o "Doutor Charneca", como este era popularmente conhecido, com uma ação disciplinar e outra judicial, caso este persistisse no atrevimento de vender “aulas desgravadas” como sendo da sua autoria. Mas nunca o fez, pelo menos que eu tivesse conhecimento. O medo de cair no ridículo certamente deve ter sido mais forte. O certo é que o “Doutor Charneca” fez uma fulgurante carreira de vendedor de sebentas até ao final dos seus dias.

O "doutor Charneca", falecido há quase duas décadas, fazia bastante dinheiro com os caloiros do 1º ano, pelo menos até eles descobrirem que lhes ficava mais barato pedir emprestado as sebentas, compradas por alguns incautos à entrada da Faculdade, e fazerem eles mesmos depois as fotocópias.
Quando faltavam casacos e gravatas para a rapaziada enfrentar o Miranda em prova oral, mediante o pagamento de uma imperial e uma sandes, o “Doutor Charneca” emprestava o seu casaco cinzento e a gravata preta cheia de lustro e retirava-se para os seus aposentos, até que alguém lhe ia entregar a indumentária.

O Miranda percebia o golpe evidente, mas, cumprida a formalidade por ele exigida, nada podia fazer: a mesma gravata preta cheia nódoas e lustro e um casaco cinzento-rato, pertencente à farda então utilizada pelos contínuos dos estabelecimentos do ensino superior, era usada por vários examinados e a alguns, como seria de esperar, o casaco ficava curto em demasia ou comprido em excesso. A gravata conhecia nós estranhíssimos, feitos à pressa, e mais parecia um trapo preto mal-amanhado. Perante o risível da situação, no entanto, ninguém se atrevia a deixar escapar uma manifestação de humor, pois a tensão do exame oral, que decidia da vida ou da morte do aluno àquela cadeira, ia em breve conhecer um veredito.

A exigência formal imposta pelo catedrático estava cumprida e os alunos, assim que terminavam a prova, iam para a casa de banho para se desfardarem e dar de empréstimo a um dos próximos examinados. No final, alguém estava encarregue de devolver o casaco e a gravata ao “doutor Charneca”, que entretanto já esperava algures no bar, em mangas de camisa, a mamar imperiais e sandes de presunto, tudo pago.

O desfiar de histórias grotescas atribuídas a este Professor não têm fim e limito-me a contar aquelas que presenciei.

Num dia de provas orais, a que nós habitualmente assistíamos, para saber o género de perguntas que eram feitas e quais as que se repetiam, estando eu na sala de exames, aproximou-se um contínuo da mesa do júri e teve a ousadia de interromper o catedrático para o informar de algo supostamente grave. Quase lhe segredou ao ouvido a informação e ninguém ficou a saber o que se estava a passar. Como resposta ao funcionário, Jorge Miranda empregou as seguintes palavras que jamais esquecerei: “Quando terminar o exame deste senhor já vou lá a baixo resolver a situação".

De acordo com o testemunho de imensas pessoas - eu pessoalmente não presenciei este cenário, pois a sala de exames orais encontrava-se no segundo piso do lado sul do edifício e o parqueamento automóvel situava-se na entrada da Faculdade, no lado norte - um dos filhos do Professor, com algum grau de deficiência mental, tinha ficado dentro do automóvel do pai, enquanto este despachava rapidamente os 4 ou 5 alunos que restavam ser examinados naquela tarde. O rapaz, ao que parece, tinha ficado com a cabeça entalada no vidro e estava com dificuldades em fazer reverter o elevador. Ninguém na parte exterior podia fazer alguma coisa porque as portas estavam trancadas. Só partindo uma janela do automóvel.

O Professor terminou o exame oral que tinha em mãos e depois saiu calmamente da sala. Nunca lhe notei qualquer sinal de ansiedade, perda de concentração ou perturbação.

Este era o bizarro Jorge Miranda, o homem que, com pontualidade britânica, lanchava pelas 17h00, servido de bandeja, levada a pé pelas escadas até ao último andar, onde se situava o seu gabinete, pela contínua mais graxista e serviçal da Faculdade, que tinha uma forma peculiar de o cumprimentar, em tom flauteado: “Boa tarde, Sr. Professoooooooor!”.

O senhor Doutor nunca frequentava o bar dos alunos nem se misturava com a arraia-miúda - o povo, nas palavras do cronista Fernão Lopes, trazido hoje à colação pelo nosso presidente. Sentia-se, outrossim, pertencer a uma casta superior. Lembro-me perfeitamente dos assistentes ladearem-no e colocarem-lhe o casaco pelas costas à saída do gabinete, bem como nunca o ultrapassarem nos corredores.

A Faculdade estava repleta de lambe-cús, começando nos funcionários, passando pelos alunos e terminando nos assistentes. Todos se curvavam perante o poder absoluto que por lá reinava, ao abrigo de um perverso sistema chamado “autonomia universitária”, que, em nome da “liberdade científica”, quase tudo permite.

Hoje foi sem surpresa que o vejo igual a si mesmo: longe da populaça, épico, formalíssimo, vazio de emoções.

Felizes dos que conseguem ficar a 4 metros de distância do insigne. Famoso pelos seus perdigotos quando fala, a boca inunda-se-lhe de uma espuma branca horrível e a ausência de um guarda-chuva pode redundar numa tragédia.

Velhos tempos que não voltam mais.











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