quinta-feira, 8 de março de 2012

Hélio Isidoro Cassiano Marofas





Chamo-me Hélio Isidoro Cassiano Marofas. Hélios, como na mitologia grega, o olho do mundo -  filho de Hipérion,  neto de Urano e de Gaia, irmão de Eos, a Aurora, e de Selene, a Lua. Nunca gostei do meu nome. Quando me perguntam o que faço na vida nunca sei ao certo o que responder. Sou fazedor de códigos. Tirei uma licenciatura em jurisprudência há mais de trinta anos e, passados que foram mais de vinte anos de ensino público, dediquei-me a esta tarefa inglória. Actualmente é com isto que governo a minha vida: compilo legislação, recolho leis avulsas, reúno colectâneas, plagio códigos, limito-me a oferendar-lhes um preâmbulo, cujo título começa invariavelmente pelas mesmas palavras: nota do autor. O autor não pode ser a minha pessoa, como é evidente; e é aqui que começa a desonestidade intelectual e a trama da culpabilidade que se desenrola dentro de mim. Arrogo-me autor de leis arquitectadas por juristas cujas identidades se perderam no tempo, diplomas que foram mais tarde modificados por outros; gentes que labutam no anonimato de gabinetes esconsos dos ministérios e cujos nomes nunca vêm à ribalta. Tenho a ousadia de fazer editar códigos jurídicos com o meu nome impresso na capa, como se tratassem de realizações saídas da imaginação e labor de um autor de prosas. Sirvo-me indecentemente dos meus estafados pergaminhos académicos e das influências que granjeei junto das editoras da especialidade, para juntar umas patacoadas, a título de introdução, e dar a uma colectânea legislativa o privilégio de me ter como pretenso progenitor. Os meus colegas dizem-me para não me sentir assim.  Eles defendem a ideia de que até um código carece de alguma humanidade e é um beneficio que concedo à aridez das regulas dar-lhes um nome, uma paternidade. Ganho bastante dinheiro com este mecanismo fraudulento e sei de antemão que é o meu nome que vende e não a qualidade da falácia do meu trabalho – que nem existe!  
Moro só e tenho caspa abundante no cabelo. Já fiz setenta e dois anos e não tenho mulher, filhos, nem pretendentes. Sou aquilo que se pode chamar um homem desinteressante, credenciado pela mediocridade institucional de uma escola de propagadores de doutrinas alheias. Aprendi, como todos, a arte e o engenho da reformulação, de forma a dar a entender que aquilo que escrevo é algo original e não a redundância clássica do lente universitário que precisa granjear uma escola para sobreviver como tal. Actualmente estou de férias na Patagónia, planejando mentalmente um homicídio, ou talvez isso seja só um desejo insano que nunca terá concretização. Nem sempre o corpo docente de uma Universidade se anima de boas intenções. São conhecidas as rivalidades, os extremos da maledicência, a teia de intriga em que desenvolvem e encontram-se aí exemplos de baixeza sem par, mantidos sotto voce e, felizmente, ignorados pelos discentes e pelas gentes em geral. No entanto, os casos em que se resolvem por homicídio são, quero esperá-lo, bastante raros, constituindo uma excepção. Não gostava de ficar conhecido como o professor assassino mas, por outro lado, o que tenho eu a perder?

Um colega mais novo, cheio de mestrados e doutoramentos obtidos em universidades americanas, anda a arruinar-me o negócio próspero das edições. Será que ele não se apercebe que nestas coisas há monopólios, uma primazia tácita dos mais velhos face aos que ainda não chegaram às luzes da ribalta? A vingança não é uma modalidade criminosa simples. É muito subjectiva. Fundamental na vingança é que o objecto do ódio tenha a perspicácia de dar por ela. Se cremos que nos vingámos e o outro prossegue na sua vida bonançoso, indiferente, então não nos vingámos. Isto implica um conhecimento profundo do sujeito de quem pretendemos vingar-nos. Mas o que é o nosso conhecimento do outro senão um caos de interpretações, de pressupostos, de hipóteses, de mal-entendidos, pousados eles mesmos sobre uma série de omissões, máscaras, de silêncios, de vazios? É um estranho conhecimento, uma quase ignorância. Não é o medo da retaliação que me impede de me vingar dele. É antes este aspecto contingente.

Quando regressar destas férias auscultarei a minha real vontade. Para já, faltam quinze minutos para a meia-noite e não quero perder por nada deste mundo a abertura dos Jogos Pan-Americanos. Já pedi que me trouxessem uma garrafa de rum cá acima ao quarto. O reclamo luminoso do hotel está quase a fundir-se e receio que não passe desta noite. Agradeço à divina providência por isso, pois já não suporto mais a intermitência do néon abusando do interior do meu quarto noite dentro. *



*Jorge Rebelo - Barreiro19.07.2007