quarta-feira, 21 de março de 2012

Que eu (não) deambule - pelas ruas de Leiria


Na rua estava um frio glaciar. Ainda agora passara junto ao decadente Café Colonial, na Rua da Arquivo, e, contra tudo o que é costume, entrei. Trata-se de um pequeno café de bairro, velho ícone da cidade, uma reminiscência dos idos anos cinquenta, frequentado por clientes useiros, sobretudo homens.  Constatei que quase todos tinham os olhos pregados no televisor para assistir a uma partida de futebol e a vozearia era tão grande que mal conseguia fazer-me ouvir junto da empregada do balcão. Lá dentro, um fumo pesado e plúmbeo empestava o ar e provocava náuseas. De súbito, uma das equipas em campo marcou golo. O clima do estádio transbordou do televisor e veio derramar-se sobre as mesas. Os presentes, como se um reflexo condicionado se tivesse apossado deles, levantaram-se todos, enquanto ecos das explosões de alegria se soltavam no espaço  incaracteristíco do pequeno café. Um homem de semblante rude e barba de vários dias, transpirava de entusiasmo e também dos "finos", a julgar pela meia dúzia de copos vazios sobre a mesa que repartia com dois amigos. Puxou do isqueiro para acender mais um cigarro e encomendou uma rodada final para festejar a goleada recente. Nessa altura os meus olhos já lacrimejavam de dor.

Fiz um esforço para não inalar o ar rarefeito e cianidríco, paguei a embalagem de "Trident Fruit" e saí. Na rua esperava-me o mesmo frio insuportável que parecia querer entranhar-se nos ossos. Antes de me dirigir ao Mercado de Sant'Ana para jantar, detive-me numa igreja. Lá dentro as luzes bruxuleantes das velas desenhavam sombras grotescas nas paredes altas e um  cheiro intenso a incenso impregnava o ar. O contraste da sucessão de ambientes resultava fantástico. Apesar de agnóstico, nunca havia perdido o hábito de entrar em igrejas. Tudo tinha vindo paulatinamente a mudar na minha vida e o profano conquistava espaços que há muito a educação religiosa havia ocupado - mais por imposição familiar e enquadramento social do que pelo rigor de um convencimento assumido. No entanto, sentia que ainda conservava viva a matriz íntima da minha formação católica; isso não se perde facilmente. E sempre que entrava em templos, fazia-o à procura dos silêncios, do repouso e da sensibilidade que me proporcionavam a visão das talhas douradas, das madeiras ancestrais e dos cheiros a mofo e a incenso. Adorava o misticismo do lugar. Nunca possuira profundos conhecimentos de História de Arte, nem me considerava apto a discorrer sobre qualquer tipo de arte, no entanto admirava a talha barroca, sobretudo os trabalhos em folha de ouro e a cor e os reflexos da nobreza do metal, envelhecido e deteriorado pelo tempo.

Finalmente jantei. Uma refeição tudo menos ligeira para o adiantado da hora: sopa de nabiças seguida de uma omelete gigante recheada de camarões. Com o estômago tão cheio, receava que tão cedo não conseguisse deitar-me. Tinha vontade que Morfeu me visitasse e beijasse sem deixar marcas. Nessa noite queria ter sonhos de ouro como há muito não tinha, fortes e capazes de escorraçar os fantasmas das preocupações da vida e enfunar as velas da memória das coisas mais belas com que se pudesse sonhar. Cada vez mais me convencia de que tudo acontecia dentro da minha cabeça e o segredo estava no correcto manejo dos "botões". Talvez eu há muito andasse carecido de uma "afinação", por testemunhar em demasia "diálogos de silêncios" - monólogos?! - fiel depositário do registo de factos a que, no geral, os outros não davam demasiada importância.

Nessa noite, já não me importava, sequer, resignar-me à sorte que cismava em me quer traçar um destino menos benéfico. Sabia que, quando o momento  chegasse, partiria sem gritos; e até com isso seria condescendente. Tivesse eu ainda tempo para poder olhar os sitíos, interpretar a dimensão da luz, sentir o amor, sentir-me, e ensaiar poéticas possíveis para expatriar alguns dos meus pensamentos.

(escrito em Leiria, no ano de 2007, numa solitária noite de inverno)

Sem comentários:

Enviar um comentário