domingo, 20 de fevereiro de 2011

O Capuchinho Vermelho




O Lobo motard e a sua bela garupa
[Versão dos Irmãos Grimm (século XVII) - truncada da história original de Perrault, bem mais violenta e sem um final feliz - seguida de comentários (meus) inspirados na (re) leitura de algumas partes do celebérrimo livro 'A Psicanálise dos Contos de Fadas', que acabam por rejeitar o registo interpretativo original e seguir um raciocínio, porventura,  muito mais delirante. ]

Era uma vez uma linda menina de quem todos gostavam muito. A avó, então, essa nem sabia que mais lhe havia de dar! Certa vez ofereceu-lhe um capuchinho de veludo vermelho que lhe ficava tão bem que a menina nunca mais o tirou e assim passaram a chamar-lhe “Capuchinho Vermelho”.
Um dia, a mãe chamou-a e disse-lhe:
— Anda cá, Capuchinho Vermelho. Pega neste bolo e nesta garrafa de vinho e leva‑os à tua avó, que está doente. Vão fazer-lhe bem. Quando lá chegares não te esqueças de lhe dar um beijo e não andes a bisbilhotar pela casa toda. Agora, é melhor ires antes que fique muito calor. E não te afastes do caminho senão tropeças, cais, partes a garrafa e a avó fica sem nada.
― Vou fazer tudo direitinho! ― respondeu o Capuchinho Vermelho, despedindo-se da mãe.
A avó vivia no meio da floresta, a cerca de meia hora da aldeia. Na floresta, o Capuchinho Vermelho encontrou o lobo, mas, como não sabia que ele era mau, não se assustou.
― Bom dia, Capuchinho Vermelho ― disse-lhe ele.
― Bom dia, senhor Lobo.
― Onde vais tão cedo?
― Vou a casa da minha avó.
― E o que levas no avental?
― Levo um bolo que fizemos ontem e uma garrafa de vinho. São para a minha avó, que está doente, ganhar forças.
― E a tua avó, onde é que ela mora?
― Mora um pouco mais longe. A casa fica debaixo de três grandes carvalhos e, mais adiante, há três nogueiras. Já a deves ter visto.
O lobo pensou: “Esta menina tenra deve ser uma delícia. Bem melhor do que a avó. Tenho de arranjar uma artimanha para as comer às duas”.
Acompanhou o Capuchinho Vermelho por uns momentos e disse-lhe:
― Capuchinho Vermelho, já viste que lindas flores? Por que não olhas à tua volta? Tenho a impressão de que nem ouves o chilrear dos passarinhos! Vais a direito como se fosses para a escola e, no entanto, aqui na floresta é tudo tão divertido!
O Capuchinho Vermelho levantou os olhos e viu os raios de sol a dançarem entre as árvores, por todo o lado flores, e pensou: “A minha avó havia de ficar toda contente se eu lhe levasse um ramo”.
Saiu do caminho e pôs-se a colher flores. Mal colhia uma, logo via outra mais bonita adiante, corria para lá e assim se foi embrenhando na floresta.
Quanto ao lobo, esse correu a casa da avó e bateu à porta.
― Quem é?
― É o Capuchinho Vermelho. Trago-te um bolo e vinho. Abre!         
― Dá a volta ao trinco ― gritou a avó. ― Estou demasiado fraca para me levantar.
O lobo deu a volta ao trinco, empurrou a porta, entrou e, sem dizer palavra, foi direito à cama da avó e comeu-a. Depois vestiu-se com as roupas da velhinha, pôs a touca, deitou-se na cama e correu as cortinas.
Entretanto, o Capuchinho Vermelho apanhava flores, e só quando já não conseguiu pegar em mais é que se lembrou da avó e se pôs de novo a caminho. Ficou espantada ao ver a porta aberta e, quando entrou, tudo lhe pareceu estranho. “Meu Deus – pensou – que medo tenho hoje, quando gosto tanto de estar com a avó!”
Deu os bons-dias, mas não lhe responderam. Foi até à cama e abriu as cortinas. A avó, deitada com a touca enfiada até aos olhos, tinha um ar esquisito.
― Oh! avó, que grandes orelhas tu tens!
― São para te ouvir melhor, minha netinha.
― Oh! avó, que grandes olhos tu tens!
― São para te ver melhor, minha netinha.
― Oh! avó, que grandes mãos tu tens!
― São para te abraçar melhor, minha netinha.
― Oh! avó, que boca tão grande tu tens!
― É para te comer.
Dizendo isto, o lobo saltou da cama e devorou o Capuchinho Vermelho.
Já sem fome, voltou a deitar-se, adormeceu e pôs-se a ressonar muito alto. Um caçador que, precisamente naquele momento, ia a passar por ali, pensou: “Como é que a velha está a ressonar tão alto? É melhor eu ir ver se ela não precisa de nada.”
Entrou no quarto e aproximou-se da cama: o lobo estava lá deitado.
― Até que enfim que te encontro, grande patife! Ando há tanto tempo à tua espera.
Pensou em apontar-lhe a arma; mas lembrou-se de que o lobo podia ter devorado a avó. Assim, não atirou; pegou num par de tesouras e pôs-se a abrir-lhe a pança. O lobo continuava a dormir. Ao dar as primeiras tesouradas, o Capuchinho Vermelho saltou lá de dentro a dizer:
― Ai que medo eu tive! Como estava escuro dentro da barriga do lobo!
Depois foi a vez de a avó sair, ainda viva, mas mal podendo respirar. O Capuchinho Vermelho foi rapidamente buscar umas pedras grandes e com elas encheu a pança do lobo. Quando este acordou, quis fugir, mas as pedras eram tão pesadas que caiu ao chão e morreu.

Então os três ficaram todos contentes. O caçador ficou com a pele do lobo. A avó comeu o bolo e bebeu o vinho que a neta tinha trazido e sentiu-se melhor. Quanto ao Capuchinho Vermelho, pensava: “Nunca mais volto a desviar-me do caminho quando a minha mãe mo proibir.” 

Estive a reler parcialmente o famoso livro 'A Psicanálise dos Contos de Fadas',  mormente a parte em que aborda a história do Capuchinho Vermelho, um dos contos mais conhecidos do repertório das histórias da nossa meninice, e seria quase tentado a dizer que já tudo foi escrito sobre ele. Será que a moral da história não é clara? “O Capuchinho Vermelho concluiu que não mais deveria deixar o caminho traçado para vadiar na floresta.” O conto é normalmente apresentado como um aviso às crianças, nomeadamente às raparigas, para que tenham em conta os perigos que as espreitam e desconfiem de tudo e de todos, a fim de se furtarem a encontros indesejáveis e evitarem acabar na 'barriga' de um lobo. Esta visão moralista remonta à versão truncada de Perrault, publicada no final do século XVII – infelizmente mais conhecida em França do que a dos Grimm – e na qual o episódio do caçador a libertar a menina e a avó do ventre do lobo foi esquecido. Contrariamente à versão dos Grimm, o conto de Perrault acaba mal. Na versão original, o lobo salta sobre a menina e devora-a tout court. É uma comezaina efectiva, sem regresso nem arrependimentos, o que leva a um severo aviso à navegação, feito às meninas bonitinhas e gentis, que não devem dar ouvidos aos lobos velhos e argutos - os Lobos Maus -  não sendo assim de estranhar se um deles, mais esfaimado, as tomar de manjar. Trata-se, sim, da hipótese de comer e ser comido, numa metáfora que só serve se um deles efectivamente comer o outro; e este último for por ele comido; e nunca para uma situação em que se possam comer mutuamente, como fica claro.

Tentando não me deixar influenciar pelo registo do livro, nem pela interpretação analítica que faz do conto, achei melhor explicar a minha própria forma de encarar a metáfora nele contida, apresentando algumas soluções para o fatalismo que encerra. 

Perante o destino, quase irrevogável, do incauto Capuchinho Vermelho às garras do Lobo Mau, a única esperança que os fracos e os ingénuos  (as meninas, leia-se!) têm de sobreviver é: ou obedecendo estritamente às recomendações e às ordens que lhes são dadas, onde todo o prazer e toda a liberdade lhes estão interditados, porque cada esquina guarda um predador cruel que as espera; ou, em alternativa, afiarem os incisivos e serem elas também predadoras de lobos maus, numa espécie de vendeta de olho por olho, dente por dente, dentada por dentada. Se não podes com eles, junta-te a eles ou aprende como eles fazem. Que visão terrível da vida! Se os lobos podem comer capuchinhos vermelhos à vontade, e estes últimos não podem fazer o mesmo, então a vida é injusta, e só podemos responder a esta injustiça com cinismo e desespero. O Capuchinho Vermelho terá inevitavelmente de se libertar do estigma do Lobo Mau e viver plenamente e sem restrições as aventuras que lhe são mais caras, e tentar explorar o desconhecido sob sua conta e risco. 

São os Lobos Maus que vamos conhecendo ao longo da vida, que, muitas vezes, nos abrem os olhos. No conto, foi aliás ele quem abriu os olhos à menina para a beleza que a rodeava, mesmo se, entretanto, estava a pensar na melhor maneira de a comer. Até então, a menina vivera numa redoma, com uma vida moldada por vontades alheias e onde toda a sua imaginação e impulsos estavam perfeitamente reprimidos. De repente,  ela saiu do caminho estreito e rígido que a mãe lhe impusera para usufruir da natureza em seu redor. O lobo teve por função despertar. Levou-a a transgredir as leis restritas e rígidas. É óbvio que o contacto com ele pode ser 'perigoso', uma vez que ele segue a sua natureza de predador, mas será que o Capuchinho não pode inverter a fatalidade das coisas?

Não é dando somente exemplos de vida cor-de-rosa às crianças, omitindo deliberadamente as coisas más da vida, as facetas menos sãs das pessoas, os perigos que o trilhar do quotidiano nos guarda a cada instante, que se prepara alguém para a vida. É a nossa experiência de vida, o conhecimento do Bem e do Mal, a nossa intuição, a capacidade de conhecer e avaliar, que nos permitem saber se o Lobo que temos pela frente é um mero predador, ou, antes pelo contrário, alguém que, para além da trivialidade de gostar de comer seres humanos, tem outras necessidades, qualidades e valores, que ultrapassam o mero registo homeostático.

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