quinta-feira, 17 de março de 2011

Banalidades

1. Desde há quase uma semana que ando a navegar à bolina com responsabilidades acrescidas em virtude do meu chefe se encontrar em acções de formação. Quase estouro, tanta é a carga em cima dos ombros; e, sem estar a ganhar o ordenado que ao cargo corresponde, a motivação é escassa, para não dizer nula. Felizmente que para a semana que vem o boss está de volta e tudo regressa à normalidade. Guardo a concentração e as energias para as minhas leituras e para a prática da guitarra. Tudo o resto é um enfado de cumprimento obrigatório.

Desabafos à parte, nos menos de dois quilómetros que separam o meu local de trabalho da minha casa, apesar da rotina diária do trajecto, hoje deu-me para estar mais atento ao que me rodeia. Todas as quintas-feiras é dia de jardinagem nos canteiros que verdejam o logradouro do prédio onde se situa o meu emprego. O serviço é prestado por utentes da CERCILEI (Cooperativa de Ensino e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados de Leiria),  todos eles com algum grau, maior ou menor, de atraso mental. Há um rapaz em especial, não terá mais de vinte e poucos anos, de estatura gigantesca, sempre com um bornal militar a tiracolo e uma sanduíche na mão, que é o primeiro a chegar. De manhã, cumprimenta-me efusivamente, como se me conhecesse de algum lado, e ajuda-me a estacionar o automóvel, correndo ora para a dianteira, ora para a traseira da viatura, sugerindo manobras, como se o minúsculo Peugeot 106 carecesse de grandes viragens para se encolher entre os carrões sumptuosos que usualmente estão estacionados no parque automóvel. Ao final do dia lá está ele de novo. A eterna sanduíche na mão - tem de ser outra, pois custa a crer que o rapaz segure na mão o mesmo pão o dia inteiro -, os mesmos gestos efusivos, e lá vem ele numa corrida  desengonçada, a única que a sua deficiência permite, 'ajudar-me' a fazer marcha atrás com o carro. De seguida, como se fosse um policia de trânsito, ergue ambas as mãos e enxota-me, manda-me seguir viagem. Fica a acenar-me energicamente sem nunca parar: numa mão agarra firmemente o impreterível  pão, enquanto a outra se agita numa alegria desmesurada. Aceno-lhe também com igual vigor e fico a observar pelo espelho retrovisor a sua silhueta de bom gigante, até que o deixo de ver à primeira curva da estrada. Não sei como se chama nem tão pouco alguma vez falei com ele para além do trivial 'bom dia' e 'boa tarde'. Fiquei, no entanto, com a sensação de que o seu atraso mental também interfere com a dicção, uma vez que tem uma fala entre-cortada e alguma dificuldade em manter a língua dentro da boca.

O que mais me comove é a bondade e a pureza integral deste género de pessoas, qualidades que dificilmente se encontram nos indivíduos ditos 'normais', mas que são tão frequentes em gente com algum retardamento mental. Deus retirou-lhes a consciência padronizada, o suporte vital para serem independentes na nossa implacável sociedade - onde somos capazes de nos devorar uns aos outros sem dó nem piedade - mas obsequiou-os com qualidades dulcíssimas que confrangem e apetece relatar.

2. Ontem à noite, quando vinha das aulas de guitarra, observei que na rotunda onde sempre passo no trajecto para casa, os carros que seguiam à minha frente abrandavam ou paravam. Sem perceber o que se passava, uma vez que não conseguia avistar nada que justificasse tal atitude, chegado à rotunda,  vi uma pata e três patinhos no meio da estrada, o andar bambaleante, hesitando entre subir para o redondel, onde ficariam a salvo dos automóveis, ou deixarem-se ficar no meio da estrada. Fiquei agradado com a atitude dos automobilistas que, carinhosamente, pacientes, esperavam o tempo que fosse preciso até que os patos se decidissem a atravessar a estrada. Pensei para com os meus botões: as pessoas, afinal, têm sentimentos, bom coração, derretem-se com a visão enternecedora de uma pata-real, com os filhotes perfilados atrás de si, em  passeio nocturno numa das artérias mais movimentadas da cidade. Que coisa! As pessoas têm coração!

Hoje, ao final da tarde, logo depois de ter deixado o meu Gulliver arrumador de carros, com a sua  eterna sanduíche na mão, entrei na mesma rotunda e qual não foi o meu espanto quando vi, esmagados no alcatrão, numa massa informe, os três patinhos do dia anterior. Percebia-se que eram eles porque ainda se conseguia divisar o verde da penugem misturado numa amalgama de sangue seco, tudo completamente espezinhado pelo rodado dos inúmeros automóveis que passam por ali. Fiquei triste mas ao mesmo tempo conformado com a sua sorte. A menos que alguém, onde eu me incluo, se tivesse dado ao trabalho de parar o carro para os recolher e devolver ao seu habitat natural, as margens do Lis, o seu destino fatal estava traçado. Num outro tempo, num outro espaço, numa outra sociedade, menos apressada, menos egoísta, mais preocupada com a preservação da vida (dos outros), isto não era suposto acontecer.  Mas as coisas, infelizmente, não se passam assim.

Neste momento, já a noite escureceu o céu, a dor na garganta - custa-me a engolir a saliva - que me atormenta há alguns dias, parece que se acentuou. Já só a caixa de Ananase aviada na farmácia local me pode valer. A menos que eu não saiba, ainda não existem pílulas para o egotismo, para a insensibilidade e para a indiferença, 'virtudes' que abundam no mundo em que vivemos. Assim, que morram os patinhos sob o rodado dos carros, já que a sua vida pouco importa a quem quer que seja. O que importa mesmo é o nosso real umbigo, ainda que com algum cotão, que até isso lhe perdoamos.

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