domingo, 1 de abril de 2012

De madrugada

Fonte: Internet
Quem olha do exterior para uma janela aberta nunca vê tantas coisas como quem olha para uma janela cerrada. Não existe objeto mais profundo, mais deslumbrante, do que uma janela alumiada por uma luz ténue quando observada da rua. O que se pode ver à luz do sol é sempre menos interessante do que o que se pode ver por detrás de um vidro; e essa clausura amarela de tonalidades desmaiadas é uma espécie de ditadura inevitável para um escrevente. Terei eu chegado a um tal grau de entorpecimento que não me comprazo se não com estes adereços? Se assim não puder ser, creio que em breve  fugirei para um país onde não haja analogias com a morte, onde o sol brilhe sem obrigações e roce obliquamente pela terra como uma longa caricia sem fim. Lá, poderei finalmente tomar banhos de luz e esses pequenos nadas serão como girândolas cor-de-rosa, lembrando os reflexos do fogo de artifício de uma festa estival. Esta minha vontade pode explodir e gritar-me ajuizadamente: «Vai, seja para onde, contando que seja para fora deste mundo!» Muitas vezes descontente e inconformado, outras vezes não tanto, resta-me o consolo breve destas palavras herméticas, inúteis, que faço desfiar pela madrugada fora. Peço ao futuro, entre tantas coisas, que me conceda a graça de poder materializar alguns escritos, pois escrever é, para mim, independentemente da temática e do valor, um exercício de espairecimento fundamental: definitivo, como o ar que respiro ou os nutrientes que me fazem suspender o fim desta vida tantas vezes inóspita, quantas vezes contrária aos meus desejos. Mas viver é sempre a justaposição de tudo isto. Olhem que boa madrugada esta!

Leiria - 2008 (readaptado)

Sem comentários:

Enviar um comentário