domingo, 22 de abril de 2012

Comboiando p’la Europa




Nos anos oitenta do século passado, as minhas férias de Verão ficaram indelevelmente associadas ao comboio. Foi, para mim e para muitos, a gloriosa época dos inter-rails; das viagens no Sud-Express através da interminável Espanha, rumo a Paris-Austerlitz que, à época, funcionava como uma espécie de interface no mundo dos mochileiros. No topo do País Basco, na fronteira de Irun-Hendaye, dava-se a inevitável troca de comboio, tudo por causa da bitola dos carris franceses que era diferente da que existia na Península Ibérica.

Nós, os mochileiros, com o animo de quem se dispôs a transportar as cangas às costas durante um mês, alguns de viola amolgada na mão, despedíamo-nos do comboio provinciano cor de alumínio, que nos trazia desde Portugal, misturávamo-nos com as gentes emigrantes e corríamos juntos para as composições gaulesas azuis e brancas, muito mais modernas e atraentes. Era assaz curiosa aquela visão matinal tardia: magotes de guedelhudos, trajados de gangas, pulseiras e colares, mochilas e outros penduricalhos, misturando-se com gente de trabalho, metida em fatiotas simples, acompanhada do legendário garrafão, agarrando embrulhos e malões gigantes atados com cordas, todos saltitando numa ampla sintonia de agilidade por entre os carris de ferro. Sentíamo-nos deportados por livre vontade e era aí, nesse preciso instante, que a grande aventura começava verdadeiramente a ganhar corpo. França era já a sensação de «estrangeiro» que a Espanha ainda não transmitira. 

Ainda hoje relembro, com bastante saudade, a inolvidável experiência que é dormir sentado com a cabeça apoiada no ombro de alguém, ou numa almofada de improviso, ou mesmo na prateleira onde se coloca habitualmente a bagagem, rezando para que não entrassem passageiros a meio da noite, a fim de se poder dispor de um banco inteiro para esticar o esqueleto; o barulho característico e ritmado do ferro passando nas junções dos carris; os solavancos das travagens; os apitos lúgubres dos chefes-de-estação, na calada da noite, algures em estações perdidas nos confins dos Alpes; as luzes no interior das cabines da composição, que esmaecem a partir de uma certa hora; os revisores dos bilhetes e os guardas das fronteiras, que não olham a horas para nos acordarem, a princípio com delicadeza, de seguida, se preciso, com alguma energia e os odores humanos que insidiosamente se vão instalando, começando a fazer parte dos nossos quotidianos, naquela que é, doravante, durante um mês, a nossa primeira casa: o comboio.

[Depois de fazer um inter-rail fica-se muito melhor preparado para o seguinte. Apanhar o comboio da noite, mesmo viajando em segunda classe, pode significar duas coisas importantes: por um lado, a poupança em dinheiro de uma dormida em parque de campismo ou pensão, ainda que modesta; por outro, a garantia, quase certa, de que durante grande parte da noite se pode dispor de um banco inteiro para esticar as pernas e, naturalmente, dormir.]

De manhã, lavamo-nos nos compartimentos minúsculos do comboio enquanto sentimos o nosso destino quase à vista. Tudo com uma alegria esfuziante, estampada num rosto vincado de olheiras e cansaços, que não soçobra perante nada, tal o prazer das emoções que nos aguardam e a sede de aventura. Depois de alguns dias na cidade-luz, cada qual tomava rumos diferentes, consoante a ideia que levasse em mente. Umas vezes fui para norte, na direcção da Holanda, da Alemanha e da Escandinávia; noutras ocasiões, fui para o centro da Europa, visitando a Áustria e os países anexos, mas foram as viagens para sul, mormente as visitas à Itália, à ex-Jugoslávia, à Grécia e à Turquia, que mais saudades me deixaram.

Com pouquíssimo dinheiro no bolso, duas ou três mudas de roupa, comida para os primeiros dias, uma tenda o mais leve possível, um saco-cama e, sobretudo, uma enorme motivação e espírito de aventura, passavam-se umas férias inesquecíveis e conhecia-se gente incrível. Cada dia representava uma nova aventura e as oportunidades para pôr em prática os conhecimentos de línguas estrangeiras eram imensas. Tudo o que aprendêramos era pouco, mas chegava, já que os jovens têm uma linguagem de cariz universal.

Faz muito tempo que não utilizo esse meio de transporte que ficou, deste modo tão terno,  ligado permanentemente à minha juventude. Mas cada vez que me sento numa carruagem, num certo momento do percurso, encosto a cabeça ao vidro e olho-me nele de viés, como se fora um espelho. Nessa altura, fecho os olhos e tento transportar-me mais de trinta anos para trás, no alcance exato do pretérito desta saudade. Então, consigo vislumbrar através do vidro polido, num ligeiro assomo, um jovem magro, de cabelo farto, olhos claros e luminosos, cofiando uma barba de poucos pergaminhos, metido a fundo no caminho de um sonho. Nessa altura sorrio.  E é sempre assim. 




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