segunda-feira, 9 de abril de 2012

Caridade absurda

Caridade Absurda
O vocábulo roupa velha sugere-me a palavra roupa nova, talvez porque me venha à mente o adjetivo antónimo, ou por causa daquele agrupamento musical brasileiro que todos rotulamos de pimba e brega, mas cujas músicas são um sucesso de vendas e integram inúmeras novelas da TV Globo.
No conceito roupa velha, cabem todas as peças de vestuário que já não queremos vestir, seja porque engordámos, ou emagrecemos, ou simplesmente porque estão fora de moda, coçadas, com borbotos ou rasgões; ou porque simplesmente embirrámos com determinado vestuário que achamos já não condiz connosco; ou porque vimos alguém na rua com uma peça igual.
As razões pelas quais classificamos uma parte do nosso vestuário como dispensável e só descansamos quando nos vemos livre dele, são as mais díspares e muitas vezes renovar o guarda-roupa é um pouco como mudar de pele.
É fácil fazer caridade quando nos vemos livres de alguma coisa que já não julgamos adequada para nós. E desde o momento que ganhei o hábito de acondicionar dentro de um saco as peças de vestuário que já não têm préstimo para mim, para as deixar junto ao contentor do lixo de um determinado parque de estacionamento da minha cidade, nunca mais parei de o fazer. Apercebi-me de forma clara bastante clara que, não raro, aquilo que já não queremos pode ter uma imensa utilidade para os outros.
Regularmente, sempre pela manhã, deixo um saco com as calças e as camisas que já não uso, devidamente dobradas, junto ao contentor do lixo da entrada do estacionamento. De seguida, ponho o carro em marcha e discretamente observo pelo espelho retrovisor a rapariga que arruma os carros. Num ápice, ágil como um lince, dá uma breve corrida e agarra no saco sem se deter. Nunca espreita para o seu interior. Ainda lhe resta algum pudor e preocupa-se com o eventual juízo dos transeuntes. Sigo sem nunca a olhar de frente. Obedeço ao código que ambos tacitamente construímos: nunca nos confrontamos e fingimos ignorar que o doador sabe quem é a destinatária das suas dádivas. É uma mulher nova, não terá mais do que trinta anos de idade, com aparência de tóxico-dependente, um rosto de fome e um mortiço nos olhos que denota desertos de amargura.
Dar é abdicar. Isto pouco mais é do que ofertar o (nosso) lixo aos outros, àqueles que são nossos semelhantes, com direitos, anseios, sonhos e necessidades iguais a nós. E são estas dádivas espartanas, que pugnam por manter e consentir na desigualdade, aparentadas com a caridade do estado social fascista, que eu pratico: consentir que o meu lixo seja o luxo dos outros.
Naturalmente, nada disto me enche de orgulho e a sensação de pequenez ganha corpo em mim.

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