quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Tão longe quanto possível

Partir, ainda que provisoriamente, mudar de lugar, abandonar um casulo de feridas que não saram e nos doem em permanência, é quase sempre a solução de recurso mais expedita que nos ocorre quando queremos, de algum modo, nos compensar por uma perda ou um desgosto recente. Viajar afigura-se-nos então como a solução universal, com provas dadas em todos os momentos históricos: a tal mezinha, solução mágica, com propriedades profiláticas e curativas, capaz de florear a infelicidade, o luto incontornável, o premente arejamento de ideias, o ajustamento de que carecemos para nos restabelecermos e retomarmos o equilíbrio anterior – ainda que, também ele, fosse precário, mas era-nos familiar; enfim, tudo o que possamos fazer para retornar ao modelo que nos fazia viver mais consentâneos com a nossa forma estrutural de ser, e que por um período mais ou menos longo, em nome de uma busca de felicidade, nos criou a ilusão de conseguirmos trilhar caminhos para nós inóspitos e inconciliáveis, desconcertando-nos com o húmus da nossa menos abdicável forma de viver a nossa própria existência; mas chega o momento em tudo claudica perante as evidências.

O viajante sustenta uma poderosa ilusão: a de poder deixar em terra firme, bem aferrolhado dentro de um baú, os problemas que o atormentam para, em paz e sossego, em estado quase vestal partir já arejado para um qualquer destino paradisíaco, de preferência nas Caraíbas. Ilusionismo puro. A coisa persegue-nos. Ainda que estejamos debaixo de um coqueiro, a oito mil quilómetros de distância, numa praia de cartaz da República Dominicana; ainda que nos imaginemos marinheiros da tripulação de Colombo a banhos na praia, ou sonhemos que a vida é aquela perenidade, a mágoa da perda, que julgávamos ter deixado bem aferrolhada no baú, porque é volátil, porque atravessa corpos opacos, porque existe dentro de nós, viajou connosco.

Esse é, porventura, o drama maior do utilizador frequente das viagens para esquecimento.

Parecido com as viagens, é talvez, em desespero de causa, a tendência irreprimível e oportunista de procurarmos a companhia daqueles que julgámos, num passado remoto, ainda que por engano consciente, com competências adequadas para lustrarem a nossa autoestima, quer pelos dotes bajulatórios, quer pela conversa mansa e «cantiga de trovador», mas que nos servem no momento a poderosa ilusão de nos fazerem sentir alguém valoroso e desejado. Alguém que nos faça sentir que a nossa perda é compensada por um ganho, que não descompensámos totalmente; que afinal ainda somos desejados - pois é sempre de equilíbrio que se trata, sempre que se fala destas coisas. 

Barreiro, 2007









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