quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Sapatos pontudos, joanetes & avó Quina

Um destes dias, navegando pelo Youtube, deparei-me com uma série deliciosa sobre curiosidades históricas. Gravei na box e acabei por ver, em dois dias consecutivos, todos os 10 episódios. Os aspetos mais recônditos da História, as bisbilhotices, bizarrias e escândalos, foram sempre objeto de muita curiosidade. De uma forma geral, o estudo histórico da economia e das transformações geográficas e políticas, nunca teve tantos adeptos como os seguidores das narrativas sobre as pilhérias e as singularidades existentes no tecido social ao longo da nossa existência.

Apesar de há imensos anos ter estudado História, nunca tive, em matéria de livros recomendados, acesso a narrativas consideradas “pouco sérias” pelos gurus do tempo, que decidiam o que eram factos científicos ou efabulações. O Professor Doutor José Hermano Saraiva, comunicador nato e um vulto maior da História e da cultura portuguesa, que muito admirei, sempre foi estigmatizado pelos professores da “escola do rigor científico” e apelidado de fantasista e pessoa pouco credível.

Basicamente, sempre achei que o saudoso Professor, com uma erudição notável, por vezes, para apimentar as histórias que tão bem sabia contar, estendia um pouco a toalha, preenchendo os buracos negros com invenções prodigiosas, mas isso são outros quinhentos.

Num dos episódios, achei muita piada à explicação que foi dada sobre o uso dos sapatos pontudos que vemos usualmente em pinturas representativas da época medieval. A alta classe europeia preocupava-se muito com a sua aparência, pois era por meio dela que iriam se distinguir dos demais, tanto das suas classes quanto, principalmente, das mais baixas. Usavam cores extravagantes, tecidos caros e sapatos pontudos. Ainda hoje, para algumas pessoas, regra geral para os espiritualmente mais pobres, a roupa, seja por ser de uma determinada marca considerada cara, ou pela sua estravagância, é um símbolo identitário e também um sinal de pertença a uma determinada classe ou grupo social.

Os sapatos usados pelas classes altas, na era medieval, eram sempre um investimento e, aos olhos atuais, podem parecer estranhos, muito por causa do seu formato semelhante a uma cenoura, com pontas chegando até aos 12 centímetros além dos dedos. Esse tipo de calçado era extremamente caro e quem os ostentava indicava que tinha muito poder aquisitivo, não participando em nenhuma atividade que exigisse o mínimo de movimentação (entenda-se trabalho físico).

As exumações de esqueletos de pessoas pertencentes à nobreza ou ao alto clero revelaram em cerca de 70% dos casos a existência de uma deformação óssea a que vulgarmente chamamos joanetes, pese embora a comunidade médica use certamente um vocábulo mais complexo para apelidar esta doença.

Os joanetes não são um apanágio da civilização moderna, como anteriormente se pensava, pois na Idade Média, as classes altas desenvolviam esta doença óssea, por causa dos sapatos pontudos que usavam. Sabemos também que o fator hereditário pode ser preponderante no aparecimento da maleita.

A minha avó Quina nasceu em 1900, na alvorada do século XX, e viveu a I Guerra Mundial, a Revolução de Outubro, também conhecida como Revolução Bolchevique, a Gripe Espanhola, a II Guerra Mundial, a chegada do homem à Lua – ela faleceu sem nunca ter acreditado que isso tivesse acontecido – e finalmente o 25 de Abril.

Eu tinha uma ligação especial à minha avó paterna, apesar de vivermos relativamente distantes e não nos vermos com uma grande frequência, mas gostava imenso das histórias que ela contava, os relatos de uma pessoa que viveu quase um século. Falava com tristeza e emoção quando recordava o assassinato do Rei D. Carlos e do seu filho, D. Luís Filipe, ocorrido no Terreiro do Paço em 1908. A minha avó tinha 8 anos de idade quando isso aconteceu, mas era portadora de uma memória prodigiosa. Em criança, chegou a colecionar alguns postais, feitos de cartão grosso, com a imagem do príncipe herdeiro assassinado. Também me recordo de ela contar episódios sobre os soldados gaseados, pertencentes ao Corpo Expedicionário Português, que regressavam a casa feridos, muitos deles com o sistema neurológico completamente comprometido. A propósito disso, ela tinha uma expressão que usava sem parcimónia, sempre que algum dos netos (eu, em particular) estava demasiado agitado: “ Ó rapaz, parece que estás gaseado! Acalma-te!”

A avó Joaquina faleceu, creio, com 93 anos de idade e desde a morte do seu marido, o meu avô paterno, falecido em 1964, que ela, nas suas palavras, pedia todos os dias a Deus que a levasse para perto dele. O destino, ou o Deus em que devotamente acreditava, não lhe fez a vontade e quis que ela permanecesse no mundo terreno por mais 30 anos. Tenho muitas saudades da tapioca que ela fazia, decorada com bastante canela, para o nosso lanche, das compras que me mandava fazer na mercearia da esquina, das idas à missa - uma risada enorme entre primos! - e das conversas sobre os mortos, que era o seu assunto dileto.

A crónica é sobre joanetes, sobre os sapatos pontudos usados pela fidalguia medieval e de repente aparece a minha avó Quina, como se tivesse uma licença permanente para entrar no sótão das minhas mais gratas memórias - onde ela, regra geral, está sempre presente. Os sapatos pontudos, desde que a moda foi introduzida na Idade Média, nunca desapareceram totalmente do vestuário ocidental e o seu uso era frequente na moda dos anos 70, 80 e 90 do século passado. Ainda hoje alguns malaicos e saloios, useiros cultores do mau gosto, gostam de calçar sapatos com bico, de preferência com fivela e envernizados, para remate do pitoresco.

A avó Quina tinha joanetes e sofria com dores crónicas atrozes, sempre que precisava calçar uns sapatos mais sofisticados para ir a um sítio mais solene, regra geral a missa. Lembro-me muito bem de ela me mostrar os pés e eu ficar aterrorizado com a dimensão da deformação dos ossos. Usava sempre algodão dentro dos sapatos, no lugar da deformação do osso, para tentar amortizar a dor, mas era em vão. A dor nunca a largava. Dizia ela que, quando ia à missa, a dor nos pés fazia parte de um ato sacrificial de contrição pelo perdão dos seus pecados.

A avó guardava a roupa mais chique no guarda-fatos e usava bolas de naftalina porque vivia atemorizada com as traças. Tinha fobias, como acho que todos nós temos um pouco. Recordo-a como se hoje fizesse uma viagem no tempo até ao quintal da casa de Setúbal: a avó, com o cabelo branco muito comprido, com nuances amareladas, apanhado atrás como um grande caracol, os óculos na ponta do nariz, sempre trajada de negro, em memória do falecido marido, que ela garantia nunca ter visto nu. E o odor que mais recordo dela é o cheiro a naftalina. Aos domingos, quando íamos à missa, a avó Quina destilava essa estranha fragrância. Os joanetes era coisa hereditária, pois na família também há quem os tenha,. Nunca a vi com sapatos pontudos, como os malaicos ou os fidalgos medievos. Por falar nisto,  tenho tantas saudades dela…




Sem comentários:

Enviar um comentário