segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Sempre que o sono teima em não chegar



Sempre que o sono teima em chegar, há uma de duas coisas que costumo fazer: ou leio, ou escrevo. Se opto por escrever e não tenho nenhum assunto especial em mente que queira relatar, mas tão somente a vontade de escrever, geralmente fico a matutar durante algum tempo e acabo por ser condescendente comigo mesmo: deixo que as palavras surjam naturalmente, motivadas por algum pensamento peculiar que se tenha apropriado da minha mente durante o dia, sem cuidar de grandes elaborações. O que fiz eu este sábado? Para não variar, fiz muitos quilómetros de mota. Fui até à Figueirinha e ao Portinho da Arrábida, com paragem para almoço nos arredores de Setúbal, e cheguei a Leiria já perto das oito horas da noite. O dia esteve sempre com uma tonalidade monocromática, sem que estivesse muito frio, e pouco convidativo a tirar fotografias. Foi uma viagem longa e também ela com pouca cor.

Como conduzo veículos de duas rodas desde muito novo, consegui criar uma espécie de piloto automático, que se encarrega dos reflexos e das abordagens das curvas, e uma parte da minha mente encontra-se sempre liberta para pensamentos que nada têm a ver com a condução. A nossa cabeça é um imenso sótão, capaz de albergar toda uma panóplia de recordações, e o mundo um caleidoscópio, eternamente fazendo formas e contrastes. O avivamento das memórias é muitas vezes despoletado por coisas triviais. Hoje, em Setúbal, passei em frente à casa onde nasci, há praticamente meio século atrás, e vieram-me à memória imensas recordações de infância. As brincadeiras, com o meu irmão mais velho e a minha prima, no quintal traseiro. O enorme caramachão feito de canas entrançadas ao fundo do quintal; o aroma forte das roseiras; as ameixas maduras e suculentas que surripiávamos às escondidas da avó; as parreiras carregadas de uvas doces com as abelhas a zumbir à volta; a cadela perdigueira do meu tio, a Jóia, sempre a ladrar sem parar; a minha avó, na janela do primeiro andar, a chamar-nos para irmos comer a tapioca que já estava a esfriar na mesa. Ao longe, às horas certas, o inconfundível apito lúgubre da automotora que saía da Estação do Quebedo com destino às Praias Sado.

Não se pode, nem deve, viver de recordações, mas são, sem dúvida, as memórias da minha infância que retratam os tempos mais felizes da minha vida. E a doce inocência, sem mais mistérios, é a responsável por esse desígnio. Sei que um dia, quando for oportuno, escreverei sobre esses tempos, mas não para publicar aqui. Os textos singelos como o de hoje, vêm do mesmo sítio das conversas dos conversadores ou das recordações dos anciãos: desse sótão no qual se empilham murmúrios, recortes, quinquilharia, roupas velhas, fotografias bolorentas, sorrisos, gritos de crianças. E este texto acabou por ficar inundado de frases, de afloramentos de lembranças, de palavras, tudo tocado ao de leve. Mas o mundo não se esgota, nem os textos se esgotam: há sempre esta girândola absurda. Há sempre mais, e mais, para dizer, ainda que fique para outras ocasiões. E haverá também quem leia esta crónica e pense que o cronista, desta vez, estava mesmo sem tema, o que não é de todo mentira.

dezembro de 2010



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