quinta-feira, 15 de setembro de 2022

"Se bem me lembro"

 

Seguramente, apenas as pessoas da minha geração guardam disto memória, mas entre 1969 e 1975, a RTP apresentou um programa semanal com o título sugestivo "Se bem me lembro". Durante cerca de meia hora, em horário nobre, os portugueses deixavam o Professor Vitorino Nemésio abrir-lhes as fronteiras da cultura e do conhecimento.

Nemésio era um homem apaixonado pela palavra, singularmente culto e um comunicador nato. A sua forma genuína e intimista de comunicar, tornou-o muito popular junto dos telespetadores e o modo como difundia a sua vasta erudição era, no mínimo, peculiar.

Iniciava sempre o seu monólogo com o timbre de uma conversa informal, onde trazia à colação memórias sobre acontecimentos triviais, aparentemente, assuntos que em nada poderiam interessar a quem o escutava. Podia começar com o relato de um episódio ocorrido numa praia açoriana da Ilha de Santa Maria, uma brincadeira inocente com um dos seus netos, mas a história ia-se desenrolando até que o Professor, magistralmente, começava por explicar, a propósito, que tinha sido naquela mesma praia que Gonçalo Velho havia desembarcado, corria o ano de 1431. Nos anos seguintes, seguir-se-ia o reconhecimento das restantes ilhas do arquipélago dos Açores; e, continuando neste registo, durante 30 minutos, ofertava aos seus telespetadores uma riquíssima aula de História de Portugal.

Na época em que o distinto Professor exalava a sua vasta erudição, em horário nobre do único canal da televisão, a transmissão era a preto e branco, e vista lá em casa no velho Telefunken a válvulas, com caixa de madeira envernizada, que reagia positivamente a uma pancada certeira no tampo, sempre que a imagem começava a falhar. Tínhamos constantemente ajustar a antena, porque as falhas do sinal eram frequentes, mas ninguém se queixava, pois era a tecnologia disponível e dávamos graças à divina providência por podermos ter um televisor.

Quem queria que a sua televisão tivesse imagens com aparência colorida e para prejudicar menos a visão, muitas vezes colocava um filtro azulado frente ao ecrã. O efeito era no mínimo bizarro, já que tudo ficava coado por um filtro azul, criando um efeito demasiado deslavado e artificial.

Muito mais tarde, quer na RTP Memórias, quer no Youtube, revi excertos do programa "Se bem me lembro" e recordei a forma imatura, de perplexidade, gozação e incompreensão, com que os adolescentes reagiam ao entusiasmo dos mais velhos pelas preleções do distinto Professor. Nemésio, para nós mancebos na idade, era mais um velho que debitava conversas de seca na televisão a determinada hora da semana.

Em idade madura, conheci os ensaios, os livros, a poesia e assisti com atenção às conversas televisivas do insigne escritor, e tive então consciência da magnitude do personagem.

O Rui Nemésio, amigo de infância, criatura que não vejo há mais de 50 anos, neto do distinto professor, era conhecido como o “Banana”, porventura pela bonomia com que lidava com todos. Era muito calado, calmo, judoca militante, míope e bastante inteligente. E nestas duas últimas facetas era a imagem viva do seu avô. O Rui sentia-se desconfortável com o “estigma” de ser descendente de tão popular figura televisiva e esquivava-se a conversas sobre o tema, mas todos lhe conhecíamos o orgulho indisfarçável que o inundava. Quase podia jurar que teve uma carreira tão fulgurante como a do seu avô.




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