quarta-feira, 17 de maio de 2017

Memórias de um puto xarila




Às vezes penso em Almada, a cidade da minha infância e juventude, a urbe onde saboreei os primeiros gostos e desgostos da vida, o Frei Luís de Sousa, o afamado externato onde frequentei o infantário e a primeira classe; e, mais tarde, o ano propedêutico, logo substituído pelo 12º ano, numa das maiores reformas do ensino do meu tempo.

Se fechar os olhos e me concentrar, consigo razoavelmente viajar no tempo e vislumbrar um puto vestido com uma bata azul, com um monograma com as letras RJ bordadas no bolso direito, um remoinho teimoso aprestado no cabelo, magrinho, baixote, enfezado, trajando calções justos e com uns caricatos sapatos de atacadores vermelhos nos pés. Esse puto xarila sou eu. Sempre a piscar os olhos, um tique que ainda hoje me habita, e a pestanejar por causa da luz insuportável do sol.

Com uma mala de cabedal afivelada às costas, parece que o estou a ver a caminho da escola, acompanhado pelo batuque ritmado produzido pela caixa de madeira, onde guardava os lápis, as canetas, o compasso e as réguas, a soar contra o interior da mala. Usualmente, acertava o passo por essa batida familiar.

Vivia-se o glorioso tempo das borrachas de cheiro que, além de servirem para apagar os erros, também espalhavam odores e sabiam a frutos diversos, que se cheiravam e, não raro, também se degustavam. Era o tempo das batas obrigatórias e das fisgas fabricadas com elástico de avião, das criadas arregimentadas na província, imaculadamente fardadas, que iam levar os meninos ricos à escola; das crianças que não usavam sapatos, mas possuíam calosidades tão espessas, que faziam inveja aos cascos de muitos equídeos. Uma época em que os ciganos roubavam o lanche aos meninos ricos, os berlindes multicolores, as moedas que lhes conseguissem sacar dos bolsos e os piões com que se faziam habilidades impressionantes - tornei-me um especialista na arte do pião, mais do que no futebol, desporto que nunca dominei. Era essencialmente o protótipo do puto solitário, fechado no meu pequeno mundo onde, diferente do não voluntarismo de um autista, criava conscientemente espaços interditos aos outros.

Muito por culpa da Enid Blyton, montava casas no cimo da copa das árvores, levava para lá livros, bolachas, uma almofada, lápis e papel para escrever, tudo acessórios capazes de me entreter durante uma tarde inteira. Era o puto xarila voyeur que gostava de observar do alto dos ramos, na segurança da folhagem espessa, tudo o que se passava lá em baixo, com a granítica certeza de nunca ser visto. E a sensação de poder que isso dava! O puto xarila que se deleitava a desviar carreiros de formigas com um pauzinho e que observava, com um espanto continuado, a forma como elas conseguiam, em perfeita união de esforços e coordenação, transportar um gafanhoto morto, com várias dezenas de vezes o seu tamanho e peso.

Também me lembro de seguir pessoas, escolhidas ao acaso, sem critério, numa qualquer rua da cidade e anotar a sua descrição física, onde moravam, e, quantas vezes, ter de fugir a sete pés da sua fúria, sempre que era descoberto a armar-me em sombra; furtar smiles e rebuçados no Pão de Açúcar de Almada, até um dia ser apanhado em flagrante e passar pela vergonha de ser resgatado pelo pai, com um puxão de orelhas e uma séria advertência - o pai, que até era amigo pessoal do chefe da polícia!; levar um ou dois despertadores para as sessões de cinema da meia-noite, na saudosa Incrível Almadense, e a meio da cena mais intensa - geralmente um daqueles filmes de terror série B, mais que rodados, cheios de estalinhos, tipo batata-frita e cortes - pôr os despertadores a tocar em simultâneo, provocando o quase desmaio de algumas espetadoras e o riso inevitável dos restantes.

Não têm fim as memórias do puto xarila e elas surgem às camadas, umas vezes em catadupa, outras por efeito de associações fruto do momento. Acabei de contar apenas aquelas que hoje me vieram no imediato à mente, numa espécie de brainstorming, sem peias ou crivo, mas muitas outras, se não a maior parte, estão a marinar na minha mente, entorpecidas, até um dia conhecerem a luz do dia...Não é verdade, puto xarila?

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