terça-feira, 23 de maio de 2017

Dos segredos




Para mim, uma deliciosa ocupação é deixar amadurecer um segredo e sentir o prazer inebriante de saboreá-lo a sós; mas quantas vezes a degustação desse prazer me entristece e me atira para o devaneio. O esquecimento é a melhor cortina de seda que me ocorre diante de um segredo, mas traz sempre consigo a dolorosa responsabilidade de não o poder esquecer. Guardo alguns segredos. Às vezes sinto-me, inclusive, uma espécie de repositório de segredos: uns meus, outros de pessoas que me são, ou, em algum momento, foram chegadas. Não me refiro, naturalmente, à informação que está por detrás das passwords, essa hipérbole atual, mais própria de uma criação de polichinelos, burocratas caídos em absoluta desgraça.

Nasci com o eclodir da guerra colonial e pertenço à geração dos iniciados nos primeiros cadernos de caligrafia e amestrados nos alfabetos por ditados, cópias e redações. Leio páginas de livros melhor do que comandos eletrónicos e senti algumas dificuldades em acompanhar o galopante avanço das novíssimas tecnologias. Fui treinado para descobrir sinónimos em dicionários, definições em enciclopédias, ensaios de erudição em almanaques. Sou de um tempo em que todas essas coisas se julgavam ferramentas de sobrevivência para o futuro que pudesse acontecer. E afinal, descubro-me ensarilhado entre aptidões, que me diziam ser obrigatórias, e este novo mundo de instrumentos visionários, que apenas as histórias de ficção científica me permitiam imaginar. De repente, depois de pequenas e impercetíveis metamorfoses, encontro-me dentro dessa ficção, na vida real de todos os meus dias. Passa-me pela cabeça o tempo que perdi a decorar tabuadas, nomes de rios, serras, linhas de caminho-de-ferro, declinações e fórmulas químicas. Mal eu sabia que havia de chegar a altura em que tudo isso seria absolutamente desnecessário para a prática comum da civilidade.

Hoje em dia quase tudo se resume ao preenchimento de campos informáticos e ao domínio das ditas aplicações, que tendem a estender a sua fervorosa ditadura a todos os campos da atividade humana. O neologismo «info-excluídos» entrou no léxico da competição laboral e quem não dominar com desenvoltura os ficheiros zipados, os scanners, os downloads e toda a panóplia dessas novas ferramentas, resta-lhe deixar-se ultrapassar pela voragem dos mais novos que, sequiosos de vencer e conquistar, vêm em passo de corrida ansiosos por provar que podem destronar os mais velhos das suas ciências rotineiras e caídas em desuso.

A minha capacidade para arrecadar passwords está perto de atingir o limite do suportável: é o código do alarme da repartição; são as palavras-chave para ter acesso às diferentes aplicações informáticas; a senha para iniciar o computador no ambiente de trabalho; o código do cofre; a senha para ter acesso ao telefone! Se a isto somarem as senhas que tenho para uso pessoal, desde o Multibanco, aos blogues onde escrevo, passando pelas diversas caixas de correio eletrónico, verifico facilmente que vivo num mundo de segredos onde se, porventura, me esquecer de alguma das palavras mágicas – os diversos abracadabras que se me colam como sanguessugas indispensáveis – fico ao relento de quase todas as dinâmicas que atualmente compõem as facetas da minha vida.

Apetecia-me ensaiar um regresso às origens, no sentido mais enfático da expressão, e tornar a um tempo em que imperava a rotina dos momentos comezinhos. Sinto vontade de me estender numa cama, acompanhado de uma sanduíche de marmelada e um copo de leite com Nesquick, e reler todos os livros da Enid Blyton, a começar pelas aventuras dos Sete, e deixar-me de segredos para sempre que não fossem as maravilhas que esses tempos – que não voltam mais – efabularam a minha mente de preciosidades imensas. Esses, sim, eram os verdadeiros segredos guardados por pontes que conduziam diretamente ao sonho e à felicidade.

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